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Foto do escritorMário Bertini

A Graça da Queda: Uma Análise de Graça Infinita à Luz da Teoria Crítica e da Clínica de André Green

Há uma inquietude que perpassa Graça Infinita, de David Foster Wallace, que se inscreve como um sintoma da modernidade tardia. O livro, com sua vastidão e vertigem, expõe a arquitetura de uma sociedade tomada pela compulsão ao gozo.  Nessa sociedade,  os sujeitos encontram na performance e na repetição o substituto para aquilo que, um dia, poderia ter sido chamado de desejo. Esta compulsão é, em si, o ponto de partida de nossa análise, que encontra no cruzamento da teoria crítica de Vladimir Safatle e na noção de “estado limite” em André Green um terreno fértil para compreender o romance como um texto clínico e filosófico.

-- O Sujeito da Modernidade Tardia

Safatle, em sua crítica ao neoliberalismo, descreve o sujeito contemporâneo como aquele aprisionado no circuito do excesso.  Incapaz de romper com os imperativos de produtividade, prazer e autossuficiência, esse sujeito se torna refém de um sistema que o impele a buscar satisfação incessante. Graça Infinita apresenta precisamente este sujeito:  numerosos personagens  consumidos por vícios – drogas, entretenimento, sucesso – que se tornam extensões desse sistema pulsional que anula o outro enquanto diferença.  Como afirma Safatle, "o sujeito contemporâneo é aquele que se consome no consumo, que se perde na busca incessante por uma satisfação que jamais se concretiza."

Hal Incandenza, um dos personagens centrais, é o emblema desta subjetividade que implode. Ele não encontra palavras para expressar seu sofrimento, apenas silêncios que ressoam na angústia do leitor.  "Estou tão...  perdido", confessa Hal em um raro momento de vulnerabilidade,  expressando a profunda desilusão  que o consome. André Green poderia nomear este fenômeno como a "morte psíquica", o momento em que o sujeito se torna incapaz de metabolizar o mundo interno e externo, um eu desertificado, habitado apenas por vestígios de afeto.

-- A Economia Política do Desejo

Graça Infinita não é um romance apenas sobre vícios individuais; é, sobretudo, sobre a economia política do desejo. A droga, o filme hipnotizante que aprisiona quem o assiste – "o Entretenimento" –, e a cultura do entretenimento incessante que permeia a narrativa funcionam como metáforas ampliadas da captura libidinal em um sistema que vende experiências para preencher o vazio.  "O que é viciante não é a substância em si,"  escreve Wallace, "mas o alívio que ela proporciona, a fuga que ela oferece da dor de ser." Aqui, Safatle é essencial: ele nos lembra que o neoliberalismo não é apenas um sistema econômico, mas um regime psíquico que modela nossas formas de desejar.

O conceito greeniano de “retração narcísica” oferece um contraponto clínico crucial para compreender o isolamento radical das personagens. A retração aparece como uma resposta à incapacidade de sustentar vínculos significativos em um mundo saturado de objetos descartáveis. Hal e outros personagens não conseguem constituir uma alteridade que lhes dê sustentação.  Isolados em suas próprias angústias,  eles se fecham para o mundo,  incapazes de estabelecer conexões genuínas.

-- Resistência e Ambivalência

Mas, como Safatle argumenta, há sempre um excesso, um resíduo que escapa às formas de captura do sistema. Graça Infinita, com seu estilo caleidoscópico e sua recusa em oferecer narrativas lineares ou finais conclusivos, é, em si, um gesto de resistência. A estrutura do romance desafia o leitor a confrontar a própria incapacidade de síntese, forçando-o a habitar o desconforto da ambivalência.

Essa ambivalência se traduz na ausência de sentido redentor na obra. Não há redenção em Graça Infinita, assim como não há no real do contemporâneo, diria Safatle. Para ele, a tarefa do pensamento crítico não é oferecer consolo, mas expor as falhas da estrutura, as rachaduras por onde o real insiste.

-- A Clínica do Vazio

A clínica de Green, por sua vez, ajuda a iluminar como essa ausência de redenção é vivida no nível do sujeito. O conceito de “duplo limite” – a coexistência de uma pulsão de vida inibida e de uma pulsão de morte difusa – encontra eco nos personagens de Wallace, especialmente naqueles que gravitam em torno da Ennet House, o centro de reabilitação da narrativa.  "O que se manifesta no estado limite,"  escreve Green, "é a impossibilidade de se viver plenamente a própria vida."

A Ennet House é mais do que um espaço terapêutico; é uma alegoria da condição contemporânea. Os personagens, ao tentarem reconstituir suas vidas, confrontam o vazio deixado pelo excesso. No entanto, como Safatle nos lembra, a reconstrução subjetiva não é um retorno à plenitude, mas um trabalho sobre as ruínas, uma reinvenção a partir do que resta.

Hal, Don Gately, Joelle Van Dyne: todos eles são sujeitos em ruínas, mas ruínas que falam, mesmo que fragmentariamente. Eles encarnam o que Safatle descreve como a dimensão trágica da subjetividade, na qual o fracasso não é uma exceção, mas a própria regra da existência.

-- O Desejo Impossível

Wallace parece sugerir que, em um mundo saturado de consumo e imagens, o único espaço para a subjetividade é aquele que emerge na falha, no silêncio, no intervalo entre um gozo e outro. Safatle chamaria isso de uma “economia do impossível”, uma tentativa de articular um desejo que resiste à captura.

A questão do desejo, aliás, é central na leitura de André Green. Em Graça Infinita, o desejo é constantemente sufocado pelo gozo. Os personagens não desejam; eles consomem, repetem, atuam compulsivamente. A clínica de Green nos ajuda a compreender que essa repetição não é apenas um hábito, mas uma defesa contra o vazio psíquico, um vazio que o neoliberalismo amplifica ao prometer preenchê-lo.  "A promessa ilusória de satisfação completa,"  adverte Green, "conduz o sujeito a um ciclo interminável de busca por um objeto que jamais o completará."

O filme hipnotizante que dá título ao livro é a metáfora definitiva dessa promessa. Ele oferece um prazer absoluto, mas ao custo da subjetividade. Assistir ao filme é um ato de autodestruição, uma entrega total à pulsão de morte. Aqui, a teoria crítica de Safatle dialoga com Green: ambos apontam para a forma como o excesso pode destruir a capacidade de simbolização.

-- A Aporia da Redenção

No entanto, Wallace não oferece uma solução fácil para essa aporia. Ele não nos dá uma saída redentora. O romance termina em suspenso, assim como as vidas de seus personagens. É um gesto de honestidade brutal, que ressoa com a crítica safatliana à ideologia do progresso linear e à falsa promessa de superação total.

A literatura, para Wallace, é o espaço onde essas contradições podem ser articuladas sem a necessidade de resolução. Safatle descreve a arte como um campo de resistência, onde o impossível pode ser vislumbrado. Graça Infinita é, nesse sentido, uma obra profundamente política, mas uma política que emerge do íntimo, do clínico, do psíquico.

-- Um Ato Clínico

A intersecção entre a teoria crítica e a psicanálise em Graça Infinita não é apenas teórica; ela é prática. A leitura do romance se torna um ato clínico em si, uma forma de confrontar nossos próprios vícios, nossas próprias repetições. Safatle e Green, nesse contexto, oferecem ferramentas para decifrar os enigmas que Wallace nos propõe.

A questão que permanece, no entanto, é se é possível desejar em um mundo como o de Graça Infinita. Safatle nos lembra que o desejo, quando articulado, pode ser revolucionário. Mas Green nos adverte que, para desejar, é preciso primeiro sobreviver ao vazio.

Graça Infinita não responde a essa pergunta; ele a deixa aberta, como uma ferida. Talvez essa seja sua maior graça: recusar a tentação da resposta, insistir na pergunta. A teoria crítica e a psicanálise nos ensinam que o pensamento começa onde o sentido vacila.

-- O Espelho Infinito

No fim, Graça Infinita não é apenas um romance, mas um espelho. Ele reflete nossas próprias contradições, nossas próprias falhas. Ler Wallace é, de certa forma, submeter-se a uma análise: uma análise onde não há analista, apenas o texto e seu leitor.

E, como em toda análise, o que importa não é o fim, mas o processo. Graça Infinita nos convida a habitar o processo, a suportar o desconforto da ambivalência, a reconhecer que, talvez, a graça esteja precisamente no infinito, naquilo que jamais se resolve.



Criado com auxílio de IA


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