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A imperfeição como forma de verdade — Wabi-sabi e psicanálise na crítica da cultura da performance

Há uma beleza que escapa aos olhos treinados pela simetria. Uma beleza que não se entrega à lógica da completude, nem à ilusão do controle. Essa beleza tem nome japonês e alma efêmera: wabi-sabi. Em sua filosofia silenciosa, encontramos uma ética estética que valoriza a imperfeição, a impermanência e o inacabado — em radical contraposição à cultura ocidental contemporânea, movida por ideais de perfeição, progresso contínuo e exibição narcísica. O que aconteceria se cruzássemos esse ethos com a escuta analítica? Se permitíssemos que a psicanálise, ela mesma herdeira das falhas, dos lapsos e das fendas, se encontrasse com esse modo de ver e sentir o mundo? O que essa conjunção teria a dizer sobre nós, nossos modos de sofrer, e o mal-estar que nos atravessa sob a égide da performance?


Na tradição do wabi-sabi, aquilo que é quebrado não é descartado, mas valorizado por sua cicatriz. Objetos lascados, cerâmicas trincadas, superfícies desgastadas — tudo carrega a história de um tempo que passa e transforma. A beleza aqui não é um atributo externo, mas um vestígio de vivência. Essa perspectiva opera como antídoto ao ideal de um Eu coeso, blindado, eficiente. A psicanálise, especialmente nas suas vertentes voltadas à escuta do traumático, do despedaçado e do enigmático (como em Ferenczi, Winnicott, Roussillon ou Green), também encontra valor no fragmento. O sujeito do inconsciente não é íntegro; ele é rachadura, memória implícita, afeto não simbolizado. Talvez o que o wabi-sabi intui, a psicanálise elabora: que a verdade do sujeito está nas falhas.


Somos atravessados por uma cultura que odeia o erro, que mascara o desgaste, que celebra a transparência das superfícies lisas. A psicanálise, porém, aposta na opacidade. O que cura não é a explicação, mas o trabalho do tempo sobre aquilo que se recusa a se encaixar. A cultura do desempenho exige o aperfeiçoamento constante, o currículo impecável, o corpo disciplinado, a mente produtiva. O sofrimento é medicalizado ou escondido. O cansaço é vergonha. A tristeza, uma falha de caráter. O envelhecimento, uma ameaça. Mas o wabi-sabi nos sussurra outra lógica: há dignidade na ruína, beleza naquilo que se despede, sentido no que escapa.


Essa valorização do inacabado ressoa fortemente com o que André Green chamaria de “representação negativa”. Em sua teorização sobre a negatividade psíquica, Green aponta a importância de dar lugar ao que não se inscreve simbolicamente, ao que falta. A clínica não consiste em restaurar um ideal de completude, mas em sustentar a ausência sem anulá-la. O wabi-sabi, de forma poética, vive nessa mesma ética: ao invés de negar o tempo, ele o celebra; ao invés de polir a cicatriz, ele a ilumina com ouro, como no kintsugi, técnica japonesa de reparar cerâmicas com laca e pó dourado.


O inconsciente não busca perfeição. Ele insiste no retorno, na repetição, no traço deixado pelo que não pôde ser dito. A cultura da otimização, por outro lado, exige que sejamos máquinas eficientes, insensíveis às próprias fissuras. Nessa disjunção, instala-se um mal-estar profundo. Cada vez mais sujeitos chegam aos consultórios exaustos, não por falta de potência, mas pela obrigação de serem potentes o tempo todo. O desejo, quando capturado pela lógica da performance, vira tirania. E onde o desejo é tiranizado, o sintoma floresce — como protesto, como sabotagem, como pedido de outra forma de vida.


A escuta psicanalítica, como o olhar wabi-sabi, não exige cura imediata nem resolução perfeita. Ela acompanha. Sustenta o tempo necessário da dor. Reconhece que há sentido na hesitação, que o sofrimento não é algo a ser descartado, mas atravessado. Que há beleza em não saber — e potência em não ter resposta. Talvez o papel da psicanálise hoje não seja o de “consertar” sujeitos para que retornem à lógica produtiva, mas o de cultivar, como faz o artesão wabi-sabi, um espaço onde o quebrado possa ser acolhido e, quem sabe, resignificado.


É possível imaginar uma clínica que se inspire nesse princípio: menos centrada na normatividade e mais disposta a escutar o estranho, o marginal, o inacabado. Uma clínica que compreende que há poesia no silêncio, verdade no vacilo, humanidade no que não fecha. Talvez, ao escutarmos o sujeito como se olha um objeto wabi-sabi — não com julgamento, mas com reverência pelas marcas do tempo —, possamos começar a construir uma ética mais compassiva. Uma ética que, ao invés de nos empurrar para a performance contínua, nos permita, enfim, descansar. Ou falhar. Ou apenas estar.


Porque talvez, como diria Rilke, “a beleza é o início do terror que ainda somos capazes de suportar”. E talvez a beleza que precisamos agora — e que a psicanálise pode sustentar — seja aquela que acolhe o torto, o gasto, o sem nome. A beleza daquilo que, mesmo ferido, continua a pulsar.




Criado com auxílio de IA.



 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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