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Foto do escritorMário Bertini

A máscara que sorri e chora: André Green à luz do poema das sete faces



Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.


Há algo de profundamente inquietante no riso do anjo torto. Não é um riso de alegria, tampouco de ironia, mas um riso que parece surgir de uma fenda — um intervalo entre o ser e o não-ser. André Green, ao articular o conceito de objeto ausente, nos oferece uma chave para ler esse anjo, essa sombra que abraça Carlos no instante do nascimento, já anunciando a promessa de um desajuste. O "gauche", na linguagem de Green, seria menos uma posição social do que uma topologia psíquica: uma inclinação forçada ao vazio, um ponto de encontro entre o sujeito e sua própria falta.


O anjo torto carrega em si a marca do negativo, aquele elemento central na obra de Green que não é simplesmente o oposto do positivo, mas uma força que devora, apaga, suprime. Carlos, ao ser convocado pelo anjo, não é chamado à plenitude, mas à errância. Há um destino embutido nessa exortação, e ele não é de realização, mas de descentramento. "Vai, Carlos!" ecoa como uma sentença, mas também como uma libertação; como se a impossibilidade de pertencer fosse, ao mesmo tempo, o fardo e a condição de sua singularidade.


Green nos alerta para a importância do negativo não apenas como um vazio a ser preenchido, mas como uma presença viva, ativa, que molda a subjetividade de formas invisíveis. Esse negativo, no poema de Drummond, assume a forma de sombra — do anjo que não é divino, mas torto; da vida que não é plena, mas gauche. A sombra, aqui, não é um detalhe acessório, mas um vetor que reorganiza todo o campo simbólico. Ela não se opõe à luz, mas a condiciona, delineando seus contornos. Em termos greenianos, a sombra do anjo seria um equivalente ao que ele chama de desobjetalização: o movimento em que o objeto, ao mesmo tempo que se ausenta, insiste. O anjo, como figura de ausência, está presente apenas como um eco, uma marca indelével na experiência de Carlos.


E o que dizer do gauche na vida? Essa vida que não se acomoda, que escapa pelas frestas do cotidiano e se esquiva das formas convencionais de pertença? Ser gauche, nessa leitura, não é apenas uma posição marginal, mas uma forma de habitar o mundo que se dá por deslocamentos contínuos, uma cartografia de ausências. Green nos ensinaria que esse "ser gauche" é também um efeito do trauma, daquilo que não pode ser simbolizado plenamente. Carlos, ao nascer sob o signo do anjo torto, não recebe um lugar, mas uma tarefa impossível: encontrar-se no extravio, criar-se a partir do que falta.


A genialidade do poema de Drummond está na condensação de uma experiência que é simultaneamente íntima e universal. Todos nós, de certo modo, nascemos sob o signo de um anjo torto. Todos carregamos em nós uma sombra que não cede à luz. Para Green, essa sombra é também o espaço da criação, o lugar onde o sujeito se encontra com a impossibilidade e, a partir dela, tenta construir algo — um poema, uma vida, um sentido qualquer. O anjo de Drummond sorri e chora, e nesse sorriso ambíguo reconhecemos a marca do negativo, essa força que, ao nos descentrar, nos coloca em movimento.


E assim, seguimos. Gauche na vida, mas vivos, ainda assim.




Criado com auxílio de IA

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