Há algo de inquietante no modo como uma prática, nascida da subversão e do desafio à normatividade, pode se dobrar sobre si mesma, tornando-se ela própria uma nova forma de ortodoxia. A psicanálise, que um dia prometeu desvelar o inconsciente, hoje pode, em certos recantos, sufocar-se na rigidez de suas interpretações, como se o gesto inaugural de Freud tivesse se transformado em um dogma inflexível, um templo onde o silêncio é dourado e a palavra, um código a ser decifrado apenas por iniciados.
Os Dez Mandamentos de uma Seita Psicanalítica
I. Não terás outros mestres além de Freud.
A palavra de Freud é a rocha sobre a qual edificaste a casa da psicanálise. Qualquer tentativa de ir além é vista como heresia — um desvio, uma ameaça à pureza original.
II. Não questionarás a interpretação do teu analista.
Se dúvidas tens, é sinal de resistência. O analista é a boca da verdade, e qualquer tentativa de desafiar suas palavras só pode ser entendida como o eco de um inconsciente que se defende.
III. Honrarás a transferência como um contrato sagrado.
O vínculo transferencial é a única chave para a tua alma. Se sentes algo, é apenas um espelho, um reflexo distorcido de tua infância projetado sobre aquele que, no consultório, se torna o Outro absoluto.
IV. Guardarás a ortodoxia em todas as tuas práticas.
A técnica é intocável. Inovar é profanar. Adaptar-se ao mundo contemporâneo é um pecado mortal, um flerte perigoso com a superficialidade.
V. Não tomarás o nome da neutralidade em vão.
Nada revelarás de ti mesmo. Serás como uma sombra silenciosa na sala, um espelho opaco onde o paciente verá apenas seus próprios reflexos.
VI. Fará do setting um altar intocável.
O espaço e o tempo das sessões são rituais sagrados. Nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. A pontualidade é uma oferenda aos deuses da técnica.
VII. Amarás o silêncio sobre todas as coisas.
Se o paciente se cala, é porque ainda não está pronto para falar. Nunca porque o ambiente não foi seguro o suficiente para que ele pudesse se abrir. Silêncio é ouro; fala é sintoma.
VIII. Não cobiçarás os pacientes dos teus colegas.
Os pacientes são territórios demarcados. Qualquer tentativa de "roubar" um analisando é traição, motivo de excomunhão silenciosa.
IX. Não cometerás o pecado da atualização teórica.
O que foi dito por Freud, Lacan ou qualquer outro mestre é atemporal. Qualquer tentativa de questionar, atualizar ou reinterpretar é uma tentativa de diluir a verdade. A tradição não deve ser tocada.
X. Não darás ouvidos às críticas externas.
A psicanálise não precisa se justificar perante o tribunal da ciência, da sociedade ou das novas terapias. Se não te entendem, é porque não são dignos de te ouvir.
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O que vemos, então, é o perigo do fechamento, do encapsulamento. A promessa de um espaço de liberdade — de escuta, de invenção, de abertura ao que ainda não foi dito — converte-se em um campo minado, onde cada passo é um risco de transgressão. E é aqui que a psicanálise relacional emerge como uma possibilidade de fuga desse cerco. Ao rejeitar o dogma da neutralidade total e abraçar a mutualidade, ela nos lembra que o encontro clínico não é apenas um monólogo disfarçado de diálogo, mas uma troca viva, onde ambos — analista e analisando — são transformados.
Na psicanálise relacional, o consultório deixa de ser um altar inatingível e se torna um espaço de encontro humano, onde a escuta se dá não a partir de um lugar hierárquico, mas de uma relação genuína, permeável, porosa. Ao abandonar a figura do "analista-mestre" que detém a verdade, ela abre brechas para que novos significados possam emergir, para que aquilo que, no silêncio do dogma, jamais seria escutado, possa enfim ser dito. Assim, o campo psicanalítico é revivido, não como um culto à tradição, mas como um campo de descobertas, onde o desconhecido é sempre bem-vindo.
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