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A sombra da ilusão e o peso do outro


Há uma espécie de silêncio que não nasce da ausência de palavras, mas do colapso da crença que sustentava o próprio ato de falar. Quando J.-D. Nasio afirma que a depressão é a perda de uma ilusão, ele não está dizendo apenas que há um desencanto, mas que algo de estrutural se desfaz: uma ficção sustentava a vida — e ela caiu. Não qualquer ficção, mas aquela que dava contorno ao eu, à sua dignidade, ao seu lugar no mundo e no desejo do outro. A queda dessa ilusão arrasta consigo o próprio eixo da existência, e o que sobra não é o real, mas um vazio onde o real se torna insuportável.

A ilusão perdida é, muitas vezes, o laço. Uma forma de amor, um reconhecimento, uma imagem de si acalentada no espelho do outro. A psicanálise relacional, com sua ênfase na intersubjetividade, desdobra esse colapso da ilusão como uma fratura no campo relacional. A dor psíquica do deprimido não vem apenas de dentro, mas da falência de um campo compartilhado. O eu que adoece não está só, está desabitado. O outro com quem ele co-construía sentido tornou-se opaco, distante ou hostil. E a dor não é apenas pela ausência, mas pela perda da matriz onde o eu se reconhecia.

Nasio, com a precisão poética que atravessa sua escrita, nos leva a ouvir o que se cala no deprimido. Não o silêncio, mas o grito mudo que clama pela ilusão que se perdeu. Já a psicanálise relacional nos convida a escutar esse grito em sua origem: não no passado remoto de um trauma isolado, mas na contínua falência do encontro. A ilusão, então, não é apenas um engano individual — é uma promessa partilhada que se rompe. Uma dança interrompida.

O sujeito deprimido não quer apenas sair da dor. Ele quer, desesperadamente, reencontrar a ficção que tornava a vida suportável. Mas a tragédia é que, uma vez caída a ilusão, ela não pode ser simplesmente reinstaurada. Algo se deslocou de forma irreversível. É nesse ponto que a psicanálise relacional opera: não na tentativa de restaurar o perdido, mas na criação de uma nova possibilidade de sentido entre dois. A cura, se há, não é retorno, é invenção. Invenção de um outro modo de estar com o outro e consigo.

Há algo de comovente na insistência do analista relacional em sustentar o campo. Em não colapsar junto. Em oferecer, não uma resposta, mas uma presença que acolhe o caos. Nasio aponta que a depressão é também uma espécie de fidelidade ao que foi perdido — um luto que se recusa a terminar. O relacionalista, por sua vez, se pergunta: é possível que esse luto se transforme se houver alguém que o reconheça? Que não tente eliminá-lo, mas que o escute, que o suporte, que o sustente no tempo?

A análise relacional aposta na força transformadora do vínculo. Não como correção da história passada, mas como uma intervenção no presente. O presente que se constrói ali, entre duas presenças que se tocam sem se fundir. A ilusão perdida pode, talvez, dar lugar a uma nova forma de confiança. Menos idealizada, menos narcísica, mas mais real. Uma confiança que nasce da experiência de ser escutado mesmo no desamparo. De ser visto mesmo na sombra.

O depressivo não é alguém que se retirou do mundo. É alguém que foi destituído de seu lugar nele. A psicanálise relacional lê essa destituição como um acontecimento do campo, e não apenas da interioridade. O sujeito não adoece só. Ele adoece no entre. E, por isso, só pode se reerguer também no entre. Entre olhares, entre palavras, entre silêncios que sustentam e não afundam.

Nasio toca o ponto essencial: a dor do deprimido é sempre uma dor do amor. A perda da ilusão é a perda de um amor que sustentava a vida. Não importa se esse amor era idealizado, narcísico, projetado — ele era real em seus efeitos. A queda dessa sustentação lança o sujeito num abismo que não é apenas tristeza. É desorientação ontológica. O eu já não sabe mais como ser.

Mas há também uma potência oculta nesse colapso. Ao cair a ilusão, algo se revela. A possibilidade de uma relação menos marcada pelo ideal e mais pelo encontro. Um encontro que não apaga a falta, mas que a acolhe como parte do humano. A psicanálise relacional, nesse sentido, oferece não uma promessa de cura, mas uma ética do cuidado: estar com o outro no que ele tem de mais despedaçado.

A ilusão perdida, então, não precisa ser restaurada. Ela pode ser chorada, lembrada, reconhecida. E, no luto, pode nascer um outro laço, menos ilusório e mais verdadeiro. Não no sentido de um real absoluto, mas no sentido de uma verdade compartilhada. De uma construção que não nega a dor, mas que a transforma em matéria viva de vínculo.

E talvez seja isso que o deprimido mais deseja, ainda que não saiba: não a volta da ilusão, mas a possibilidade de uma nova presença. Uma presença que diga, sem palavras: eu vejo a sua queda, e estou aqui. Não para salvá-lo, mas para cair com você até que possamos, juntos, inventar outro chão.



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