A questão da diversidade linguística nos transporta ao cerne da identidade de povos e indivíduos. Cada língua, seja em um canto da floresta amazônica ou nas profundezas do Saara, é um reflexo não apenas de uma forma de comunicação, mas de uma maneira específica de ver o mundo. Para Kwame Anthony Appiah, a identidade é um espaço em construção, moldado tanto pelas escolhas pessoais quanto pelas imposições do mundo ao redor. No entanto, as línguas nos revelam algo mais: elas são tanto a marca da nossa singularidade quanto o traço da coletividade que nos ultrapassa, um fio que entrelaça as gerações passadas às futuras, mesmo quando sua presença é discreta ou subterrânea.
No Brasil, falamos português como língua oficial, e isso parece tão incontestável quanto o próprio território que chamamos de nosso. No entanto, esse fato esconde uma complexidade que muitos brasileiros talvez nunca conheçam. Existem hoje no país cerca de 274 línguas vivas, entre indígenas e de imigração. Isso inclui o português, claro, mas também mais de 180 línguas indígenas e mais de 50 línguas trazidas por imigrantes de várias partes do mundo. Como imaginar o que essas vozes dizem e o que elas significam para quem as fala? Essa pergunta é fundamental, pois, segundo Appiah, nossa identidade está sempre em um diálogo interno entre aquilo que escolhemos e aquilo que nos escolhe.
Em um mundo que se tornou tão rápido em reduzir a diversidade a uma questão de praticidade, pensar na importância dessas línguas parece quase uma excentricidade. Por que importa, afinal, que no sul do Brasil ainda se fale alemão, ou que comunidades indígenas se esforcem para manter viva uma língua falada por apenas uma centena de pessoas? A resposta é complexa, e vai além do apego cultural: cada língua carrega consigo uma forma única de expressão e, com ela, uma percepção de mundo que não se traduz facilmente para o português ou qualquer outro idioma. Appiah defende que nossas identidades são mosaicos de experiências e escolhas. As línguas, então, se tornam o material de construção desse mosaico, a argamassa que mantém unidas as múltiplas camadas que nos definem.
Mas, para muitos, essa diversidade se esconde sob a superfície de um país que se vê como monolíngue. Ser brasileiro significa, em geral, falar português. Contudo, quantos brasileiros sabem que o Guarani, o Tikuna ou o Kaingang ainda ecoam nos confins do país? E que dizer das gerações de descendentes de imigrantes que mantêm vivas suas línguas de origem – o japonês, o italiano, o árabe – criando um vínculo invisível entre o passado de seus ancestrais e o presente vivido em terras brasileiras? Essas vozes não apenas resistem, mas recriam continuamente uma identidade que é, simultaneamente, brasileira e algo além, um híbrido que se adapta ao tempo e ao lugar.
Na África, a diversidade linguística é ainda mais vasta e, em alguns países, chega a números que parecem impensáveis para nós. A Nigéria, por exemplo, abriga cerca de 525 línguas, enquanto Camarões tem aproximadamente 250. Cada uma dessas línguas conta uma história própria e, juntas, elas representam não só a complexidade do território africano, mas também a forma como as identidades se entrelaçam e se sobrepõem. Aqui, Appiah nos lembra que a identidade é relacional, construída a partir das interações com os outros e com o contexto que nos envolve. A presença de tantas línguas num mesmo país não é um detalhe: é a expressão viva de uma pluralidade que se recusa a ser contida.
Entretanto, a globalização, a urbanização e as pressões econômicas colocam essas línguas sob ameaça. Em muitos casos, falar a língua ancestral é um ato de resistência contra o desaparecimento, contra o esquecimento. Para um povo indígena brasileiro ou uma comunidade tribal africana, a língua é uma parte indissociável da sua existência, pois ela não só comunica, mas constrói e preserva a visão de mundo daquele grupo. Appiah vê esse processo como algo fundamental para a construção de uma identidade autêntica, que não se submete à homogeneização imposta pelo mundo globalizado. E ainda que o futuro dessas línguas seja incerto, seu papel enquanto forma de expressão e identidade permanece inquestionável.
Podemos perceber essas línguas como parte de uma paisagem vivencial que raramente é notada. Cada idioma tem uma textura própria, uma cadência, uma melodia que se desenrola lentamente para aqueles que lhe dão atenção. Esse ato de ouvir, de perceber, é também um ato de reconhecer a dignidade e a complexidade do outro, e, por conseguinte, de si mesmo. Ao fazer isso, transformamos o banal em poesia; e com as línguas, percebemos a beleza que há em cada som e em cada palavra esquecida.
Mas, para que essa multiplicidade continue a existir, é preciso que haja um esforço coletivo e consciente, algo que transcenda a mera política de inclusão. No Brasil, por exemplo, a sobrevivência das línguas indígenas depende não só das comunidades que as falam, mas também de uma vontade política e social que reconheça seu valor. Para Appiah, a identidade é um projeto ético, uma responsabilidade que temos uns com os outros. Preservar as línguas é, então, um compromisso ético com a diversidade e com a pluralidade, uma maneira de garantir que o outro possa continuar sendo ele mesmo.
Talvez, ao ouvirmos mais atentamente essas vozes, possamos redescobrir o que significa ser humano. Porque, afinal, cada língua traz em si um pedaço da humanidade, uma parte do nosso ser que nunca será completamente traduzível. Em última análise, as línguas nos lembram de que somos, todos, estrangeiros uns para os outros, e talvez seja exatamente essa estranheza que nos torna interessantes, complexos e dignos de serem conhecidos em toda nossa diversidade.
A multiplicidade de vozes que ainda ecoa, seja no Brasil ou na África, nos leva a um paradoxo essencial: ao mesmo tempo em que somos moldados pelas línguas que falamos, somos igualmente transformados por aquelas que não conhecemos, por aqueles modos de pensar que nos escapam. Appiah diria que nossa identidade, então, é também feita de ausências, de espaços em branco onde o outro nos habita sem que sequer o percebamos.
Essas ausências nos convidam a imaginar uma identidade que não se fecha em uma definição única, mas que se expande na medida em que escutamos o outro. Cada língua nos oferece uma pausa, um respiro, uma possibilidade de ver o mundo com novos olhos. E, enquanto houver quem fale, quem escute, quem preserve, a nossa identidade coletiva continua a se enriquecer, a crescer, a expandir-se para além de nós mesmos.
Criado com auxílio de IA
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