As dobrs do instante: sobre microfases transferenciais e o tempo condensado da repetição
- Mário Bertini
- 20 de mai.
- 6 min de leitura
Há momentos na clínica em que o tempo se dobra sobre si mesmo. Não se trata do tempo cronológico, da sucessão previsível de sessões, mas de um tempo espesso, compactado, que pulsa sob a superfície da fala. Um olhar que hesita antes de se desviar, uma risada que escapa fora de lugar, uma frase dita como quem não quer dizer — ali, no entre, algo se passa. Jonathan Shedler chama esses momentos de microfases transferenciais: breves irrupções em que o passado se infiltra no presente como um feixe de sentido condensado, como um trauma em miniatura que se repete em miniatura, mas com uma intensidade de incêndio.
Não são fases no sentido linear — são microtemporalidades que cruzam o aqui e agora, fazendo vibrar no consultório a tessitura inconsciente das relações primordiais. Elas não duram mais que alguns segundos, mas carregam dentro de si o peso de uma história inteira. E o analista que escuta com o corpo — com a pele, com as vísceras, com a intuição treinada pela experiência — pode pressentir nesses instantes um campo de força, um campo gravitacional transferencial que distorce a linguagem e dobra o tempo, como na relatividade dos afetos.
Na superfície, tudo segue como antes. O paciente talvez fale de um filme, ou de um detalhe do trabalho. Mas há um instante de descompasso, quase imperceptível: o modo como os olhos evitam os do analista, ou o tom de voz que esfria ao citar algo que deveria aquecer. É ali, nesse quase-nada, que a repetição se encarna — não como memória consciente, mas como encenação relacional. Como uma peça que se repete sem que se perceba o roteiro, até que algo — um gesto, uma escuta, um silêncio — permita a inscrição de um novo ato.
Roussillon diria que a transferência encena aquilo que não pôde ser simbolizado, que o paciente repete não o que viveu, mas o que não pôde viver. A microfase seria, então, uma pequena fenda no tecido do real, pela qual o irrepresentável escapa sob a forma de um afeto deslocado, de uma presença que incomoda, de um mal-estar súbito que inunda o ambiente. Cabe ao analista não preencher de imediato esse vazio com interpretações apressadas, mas sustentar o campo, conter a oscilação, oferecer corpo simbólico a algo que emerge ainda sem forma.
André Green talvez visse nessas irrupções a marca do negativo — o retorno do recalcado em sua dimensão afetiva mais crua, antes da representação. A microfase seria, assim, uma chance rara: o instante em que o afeto bruto, ainda não simbolizado, tenta encontrar figura no espaço intersubjetivo da clínica. Uma tentativa de reinscrição no campo do representável — tentativa que pode fracassar se for capturada cedo demais pelo discurso, mas que pode também, se acolhida, tornar-se uma passagem: do ato à palavra, da compulsão à história.
É nesse entrelugar que a microfase transferencial adquire sua potência: ela condensa e convoca. Condensa, porque ali estão todos os fantasmas — o medo de ser abandonado, a esperança de ser visto, a certeza de não ser digno — e convoca, porque exige uma resposta do analista, não como interpretação, mas como presença. Presença que escuta, que sustenta, que não recua diante do desamparo do outro. Uma presença que suporta o peso do silêncio quando a palavra ainda não pode ser dita.
Talvez seja isso que cura, no fundo: não o saber do analista, mas sua capacidade de habitar essas microfendas do tempo com o paciente. Estar ali, quando o passado reaparece travestido de presente, e não fugir. Não julgar, não corrigir, não consolar. Apenas sustentar a vibração daquele instante até que algo novo possa emergir. A clínica psicanalítica, nesse sentido, não se faz nas grandes interpretações, mas nos pequenos gestos — na microescuta de microfases que contêm, em si, o eco de histórias inteiras.
Cada sessão, então, torna-se campo de espera. Espera por esse instante condensado em que o sintoma se mostra, não como estrutura fixa, mas como tentativa desesperada de reconexão com aquilo que um dia foi perdido — e que talvez, nesse espaço coabitado, possa enfim ser reencontrado. Ainda que só por um instante. E, às vezes, esse instante basta.
Lembro de uma paciente que, durante meses, chegava sempre com cinco ou dez minutos de atraso. Nunca se desculpava. Sentava-se, ajeitava os óculos, e falava como se nada houvesse acontecido. Mas havia. Havia, sim, algo que acontecia — ainda que apenas como fratura, como ausência. Ao início, achei que se tratava de uma resistência banal. Mas com o tempo, percebi que a tensão vinha justamente de sua indiferença. Era como se eu não estivesse ali. Ou como se estivesse, mas sem consistência, sem carne, sem afeto. E então, um dia, algo se deslocou.
Ela entrou atrasada, como sempre. Mas, ao fechar a porta, hesitou. Ficou de costas por alguns segundos. Eu a observei em silêncio. Ela não se virou. Sentou-se. Disse, com a voz baixa: “Você deve estar cansado de mim.” E em seguida riu, uma risada seca, como quem escapa por uma fresta. O que aconteceu ali — naquele momento exato, naquele silêncio oblíquo entre a porta e a poltrona — foi uma microfase transferencial. Tudo se condensou naquele instante: o medo de ser percebida como incômoda, o desprezo como defesa, o desejo de que eu a visse apesar de tudo.
Eu poderia ter dito algo. Poderia ter interpretado o conteúdo, sugerido uma ligação com a figura materna crítica, ou mesmo com a história de negligência afetiva que ela tantas vezes descrevera. Mas não disse nada. Apenas olhei para ela com presença. Não “com técnica”, mas com corpo. Com o corpo da escuta, da suspensão, da espera. E ali, algo começou a se transformar. O atraso passou a ser diferente. Tornou-se menos frequente. Mas mais do que isso: tornou-se sentido.
É nesse ponto que o conceito de reenactment, em Roussillon, ilumina o processo. A paciente não falava de sua dor; ela a encenava. Reeditava comigo, no presente da sessão, aquilo que não pôde ser simbolizado no passado. O atraso não era recusa; era repetição. Um modo inconsciente de me colocar no lugar de alguém que ela temia decepcionar — ou que desejava testar. Não para me punir, mas para confirmar, em ato, sua hipótese de que não era digna de atenção verdadeira. E era exatamente ali, no ato repetido e não simbolizado, que o trabalho analítico precisava se deter.
Para Roussillon, o reenactment é a reapresentação do trauma não representado — um agir onde o dito ainda não é possível. Não se trata de resistência, mas de tentativa. Um esforço inconsciente de reinscrição da cena traumática no campo relacional presente, na esperança de que, desta vez, algo diferente possa acontecer. A microfase transferencial é, nesse contexto, o instante em que o reenactment se condensa e se mostra. Mas mostra-se de forma cifrada, simbólica apenas em potencial, ainda por traduzir.
E o analista está implicado. Não há posição neutra. O corpo do analista é atravessado pelo campo do reenactment, é incluído na cena como personagem, como destinatário de afetos que não lhe pertencem, mas que nele se inscrevem. O desconforto, a impaciência, a vontade de interromper o ciclo — tudo isso pode ser vivido como contratransferência. Mas se sustentado, se escutado com profundidade, pode revelar o que o paciente ainda não sabe que repete.
Por isso, essas microfases exigem mais do que técnica. Exigem um tipo de ética do afeto, uma disponibilidade afetiva que não se apressa em interpretar, que não fecha o que ainda está em elaboração. Porque há uma poética nesse tempo interrompido. Uma poética trágica, é verdade — feita de restos, de ecos, de repetições —, mas ainda assim uma poética: o esforço do sujeito de, mesmo sem saber, reencontrar-se com o que lhe foi perdido, na esperança de que outro, ali, o ajude a dizer o indizível.
É nessa dobra do instante que o analista, se atento, pode oferecer não uma resposta, mas uma presença que desfaz a solidão do trauma. Uma presença que, como diria Green, não interpreta o silêncio com palavras demais, mas o sustenta até que ele mesmo possa falar. A escuta dessas microfases é, nesse sentido, uma escuta do tempo condensado da dor, uma escuta do desejo de simbolização que insiste mesmo quando a linguagem falta.
E talvez seja esse o gesto mais radical da clínica: sustentar o inacabado. Acompanhar o sujeito nas margens do representável, sem pressa de traduzir, confiando que, na dobra entre o silêncio e a fala, entre o ato e o símbolo, alguma forma nova possa nascer. Ainda que tênue. Ainda que frágil. Ainda que apenas por um instante.
Criado com auxílio de IA
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