Hoje serei um pouco mais técnico. Escrevo sobre um livro que li recentemente, do psicanalista francês René Roussillon, cujos insights e sensibilidades teóricas têm sido muito úteis na prática clínica. Espero que gostem!
René Roussillon, em sua análise sobre o narcisismo e a função do objeto, desafia a compreensão habitual que temos desses conceitos, ao mostrar que eles não são elementos isolados, mas intimamente entrelaçados na constituição do sujeito. Ele explora como o narcisismo, em sua raiz, representa um estado de autossuficiência ilusória, vivenciado no início da vida psíquica, quando o bebê se percebe como completo e unido ao mundo. Essa fase inicial, chamada de narcisismo primário, funciona como um momento em que o “eu” e o “outro” ainda não foram separados, e as necessidades do bebê parecem magicamente satisfeitas. No entanto, à medida que a criança começa a perceber que existe um “outro” independente que atende às suas necessidades, o narcisismo se torna uma estrutura complexa e ambígua, oscilando entre a busca de completude e a aceitação da alteridade.
No entanto, o narcisismo não se dissolve totalmente com o desenvolvimento. Ao contrário, vestígios dessa busca por autossuficiência permanecem e podem até se intensificar, especialmente quando o sujeito recorre ao que Roussillon chama de “narcisismo secundário”. Neste estado, o indivíduo tenta recuperar a sensação de completude através de idealizações e identificações simbióticas. Este é um esforço defensivo, uma tentativa de evitar o confronto com o vazio, com a diferença do outro, com a própria vulnerabilidade. A defesa narcísica surge, então, como um refúgio contra a dor da fragmentação e da insuficiência, mas também aprisiona o sujeito em um estado de fechamento ao que é verdadeiramente outro.
Paralelamente, Roussillon introduz o conceito da função do objeto, que para ele é fundamental na estruturação da subjetividade. Essa função não é apenas um processo de apoio para o eu, mas também uma âncora que conecta o sujeito à realidade. O objeto - que pode ser uma pessoa, um relacionamento ou uma representação simbólica - assume uma função estruturante ao representar algo fora do eu, criando a possibilidade de uma relação de confiança com o mundo. A diferenciação entre o eu e o objeto é essencial para que o sujeito possa construir uma subjetividade autônoma e madura, pois permite a percepção do outro como algo separado e autêntico.
A complexidade do processo psíquico se revela na interação entre narcisismo e função do objeto. Roussillon observa que, quando o narcisismo toma controle, ele tende a “colonizar” o objeto, forçando-o a se conformar com as projeções e expectativas do sujeito. Nesse contexto, o objeto deixa de ser percebido como uma presença independente e torna-se uma extensão das necessidades e medos narcísicos. A função do objeto, quando saudável, possibilita que o sujeito experimente o outro de maneira mais realista, escapando das idealizações e percepções persecutórias que caracterizam a dinâmica narcísica.
A desconstrução do narcisismo, para Roussillon, é uma tarefa árdua e dolorosa, mas crucial no processo analítico. Esse processo exige que o sujeito abandone a fixação em suas imagens idealizadas e comece a questionar as identificações defensivas que mantém para evitar o sofrimento. A análise funciona como um espelho, onde o sujeito pode se ver e, ao mesmo tempo, desconstruir as ilusões que o aprisionam em um ciclo de estagnação psíquica. A desconstrução narcísica, no entanto, não é uma anulação do eu, mas sim uma libertação da rigidez narcísica que impede o verdadeiro desenvolvimento psíquico.
Esse processo de desconstrução obriga o sujeito a se confrontar com a incompletude, com o vazio e a imperfeição que são inerentes à existência. No lugar do ideal, surge a aceitação das limitações, uma confrontação com o vazio que, ao invés de empobrecer, enriquece a subjetividade. Ao deixar de buscar uma perfeição inatingível, o sujeito se permite construir um “eu” mais autêntico, mais aberto para a alteridade, para a diferença e para a imperfeição. Roussillon sugere que a verdadeira individuação só ocorre quando o sujeito aceita essa incompletude e, paradoxalmente, encontra liberdade nela.
Mas a desconstrução por si só não basta; é necessária uma reestruturação subjetiva. Essa reestruturação envolve uma reorganização interna que permite ao sujeito uma nova maneira de se relacionar, mais flexível, menos baseada nas defesas narcísicas do passado. Essa etapa é um processo de integração onde o sujeito começa a aceitar sua vulnerabilidade e a ver suas falhas não como ameaças, mas como partes legítimas de sua condição humana. A reestruturação é, assim, um movimento em direção a uma subjetividade que aceita a complexidade e a ambiguidade do existir, enriquecida pelas experiências de frustração e perda.
O papel do analista nesse processo é crucial e profundo. Roussillon descreve o analista como um “objeto suporte,” uma figura que sustenta o paciente enquanto ele experimenta as angústias e os desafios da desconstrução narcísica. O analista fornece um espaço onde o paciente pode projetar suas fantasias e ansiedades, mas sem o confronto direto. Ao manter uma presença diferenciada, o analista não se reduz às projeções do paciente; ao contrário, ele acolhe essas projeções e, ao mesmo tempo, mostra a existência de uma alteridade, de algo que resiste ao controle narcísico do paciente.
Essa presença diferenciada do analista atua como um espelho parcial, refletindo o paciente, mas sem ser absorvido por suas expectativas e necessidades. O paciente, então, começa a experimentar o analista como uma presença estável e real, que não é destruída por suas demandas. Roussillon vê nisso a oportunidade para uma transformação profunda da transferência, em que o paciente pode, finalmente, ver o outro como uma subjetividade própria, e não apenas como um reflexo de si mesmo. Esta experiência permite que o paciente internalize uma nova forma de relação, mais autêntica e menos permeada pelas fantasias narcísicas.
A transferência se torna, assim, um campo onde o paciente explora e reconfigura suas relações internas. Ao longo do tempo, ele percebe que o analista não corresponde a suas projeções automáticas, mas mantém uma postura de acolhimento que desafia suas expectativas. Esse processo de encontro com a alteridade do analista, com uma presença que não cede ao controle narcísico, abre espaço para que o paciente experimente uma nova forma de relação, onde o outro é finalmente reconhecido como alguém distinto, com subjetividade própria.
Essa dinâmica analítica cria o que Roussillon chama de “novos espaços psíquicos”. O paciente, ao internalizar a sustentação oferecida pelo analista, desenvolve uma capacidade interna de lidar com a diferença e com a separação. Ele se permite experimentar a presença do outro não como ameaça, mas como um enriquecimento de sua própria subjetividade. A análise, assim, torna-se um processo que permite ao sujeito abandonar a rigidez do narcisismo e abraçar uma relação autêntica e recíproca com o mundo.
A obra de Roussillon, portanto, propõe uma psicanálise que não apenas busca a dissolução de sintomas, mas a transformação profunda do modo como o sujeito se relaciona consigo e com o outro. Através da desconstrução narcísica e da reestruturação da subjetividade, o sujeito é levado a experienciar uma liberdade psíquica que transcende as barreiras impostas por suas defesas iniciais. O analista, ao oferecer um espaço de acolhimento e diferenciação, possibilita que o paciente finalmente encontre, dentro de si, um “eu” que não busca completude, mas encontra, na própria incompletude, o caminho para a autenticidade.
E aí, o que acharam?
Até a próxima
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