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Foto do escritorMário Bertini

Enactment, Estados Múltiplos do Self e Autorrevelação: Uma Tríade Relacional no Espaço Psicanalítico



A psicanálise contemporânea, especialmente em suas vertentes relacionais e intersubjetivas, exige uma abordagem que transcenda a neutralidade clássica e o foco exclusivo na interpretação verbal. Três conceitos emergem como centrais nesse cenário: enactment, estados múltiplos do self e autorrevelação. Cada um deles, em suas especificidades, descreve dimensões da relação terapêutica que envolvem complexidades da subjetividade, da interação inconsciente e da capacidade de transformação. No entanto, é no cruzamento desses conceitos, em sua interdependência, que se encontra a força de uma psicanálise viva, que não apenas interpreta, mas experimenta e recria sentidos.



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Enactment: Entre a Repetição e a Possibilidade de Transformação


O conceito de enactment nasce da necessidade de compreender fenômenos que escapam à análise puramente transferencial. Donnel Stern (2010) descreve-o como uma "encenação inconsciente" que emerge na relação analítica, envolvendo tanto paciente quanto analista em um padrão relacional que, ao mesmo tempo em que reitera o trauma ou conflito original, carrega consigo a possibilidade de ruptura e criação de novos significados. Stephen Mitchell (1997), por sua vez, ressalta que o enactment não deve ser visto como erro técnico, mas como um evento inevitável em que conteúdos psíquicos antes inacessíveis se manifestam na interação.


O caráter intersubjetivo do enactment é essencial. Jessica Benjamin (2004), ao explorar o conceito de terceiridade, nos lembra que o enactment é, antes de tudo, uma dança relacional, na qual o reconhecimento mútuo (ou sua ausência) define o potencial transformador do momento. Na prática clínica, é quando o analista consegue refletir sobre sua própria participação no enactment e nomeá-lo que a repetição dá lugar à criação. A falha é inevitável, mas a reparação, como sugere Benjamin, torna-se o verdadeiro espaço de cura.


Exemplo clínico: Uma paciente, ao sentir-se frustrada pela ausência do analista em uma semana de férias, começa a agir de forma hostil, chegando atrasada às sessões e se mostrando desinteressada. O analista, percebendo sua própria irritação diante do comportamento, identifica o enactment em curso e diz: “Tenho a sensação de que algo que aconteceu entre nós a deixou muito magoada, e talvez esteja tentando me mostrar como é ser deixada sozinha”. Ao trazer a dinâmica para a consciência, ele abre espaço para que o padrão relacional se transforme.



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Estados Múltiplos do Self: Fragmentação e Integração


Os estados múltiplos do self, conforme descritos por Philip Bromberg (1998), desafiam a visão clássica de um self unitário e coerente. O self, para Bromberg, é uma estrutura fluida, composta por estados distintos que emergem em diferentes contextos relacionais. Quando experiências traumáticas ou conflitos não podem ser integrados, esses estados permanecem isolados, levando à dissociação.


A dissociação, porém, não é vista apenas como uma patologia, mas como uma estratégia adaptativa. Bromberg argumenta que a saúde psíquica não está na ausência de estados dissociados, mas na capacidade de transitar entre eles sem perda da continuidade do self. Allan Schore (2012) complementa essa visão ao apontar a base neurobiológica dos estados múltiplos, mostrando como o trauma pode impactar a regulação emocional e a capacidade de integração psíquica.


Exemplo clínico: Um paciente que alterna entre um estado adulto funcional e um estado infantil vulnerável pode, em um momento de regressão, dizer ao analista: “Sinto que preciso que você me salve; não sei lidar com isso sozinho”. Reconhecendo o estado ativado, o analista responde: “Parece que uma parte muito jovem de você está aqui conosco hoje. Vamos escutá-la juntos.” Tal intervenção legitima o estado do self sem desautorizá-lo, promovendo integração.



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Autorrevelação: O Risco Relacional e a Transformação


A autorrevelação, frequentemente mal compreendida, não é simplesmente o ato do analista compartilhar informações pessoais. Dentro de uma perspectiva relacional, ela é um gesto que visa à autenticidade no campo intersubjetivo. Irwin Hoffman (1998) defende que a autorrevelação é inevitável, uma vez que o analista, ao estar presente na relação, já comunica algo de si — seja pelo tom de voz, pela postura ou pelas escolhas interpretativas.


Philip Ringstrom (2012) descreve a autorrevelação como um “risco relacional”, um momento em que o analista se permite ser visto em sua humanidade, para que o paciente possa experimentar o reconhecimento mútuo. Esse reconhecimento, porém, não é desprovido de limites; a autorrevelação deve sempre ser usada em serviço do processo terapêutico, e não para atender às necessidades do analista.


Exemplo clínico: Durante uma sessão marcada por um silêncio intenso, o analista compartilha: “Sinto que algo importante está acontecendo aqui, e estou percebendo em mim mesmo uma sensação de tristeza profunda. Será que isso faz sentido para você?” Essa autorrevelação emocional valida a experiência do paciente, criando um espaço de confiança e autenticidade.



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A Conexão entre Enactment, Estados do Self e Autorrevelação


Esses conceitos se entrelaçam de maneira fundamental na prática psicanalítica contemporânea. O enactment frequentemente surge quando um estado dissociado do self do paciente encontra ressonância no analista, criando uma repetição inconsciente que só pode ser transformada pela autorrevelação cuidadosa do analista. Ao nomear a dinâmica ou compartilhar sua própria experiência, o analista facilita a transição entre estados do self no paciente, promovendo integração.


Por exemplo, em um enactment marcado por uma interação agressiva entre paciente e analista, este último pode reconhecer que um estado vulnerável do paciente foi encoberto por sua agressividade. A autorrevelação pode, nesse caso, incluir um comentário como: “Notei que me senti defensivo no início, mas agora percebo que talvez você esteja se sentindo exposto. Podemos explorar isso juntos?”


Como Bromberg (1998) afirma, o trabalho analítico é menos sobre “consertar” o self fragmentado e mais sobre tornar-se capaz de permanecer na presença de múltiplas experiências internas. E, para isso, é necessário um analista que esteja disposto a habitar os espaços de incerteza e vulnerabilidade que esses conceitos evocam.



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Conclusão


A interseção entre enactment, estados múltiplos do self e autorrevelação redefine o que significa estar em análise. Esses conceitos nos lembram que a psicanálise é, antes de tudo, uma prática relacional, onde a cura se dá na falha e na reparação, no encontro entre subjetividades que se revelam e se transformam mutuamente. Como Jessica Benjamin (2004) sugere, é na possibilidade de reconhecer o outro e ser reconhecido que reside o verdadeiro potencial do trabalho analítico.



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Referências


Benjamin, J. (2004). Beyond Doer and Done to: An Intersubjective View of Thirdness. Psychoanalytic Quarterly, 73(1), 5-46.


Bromberg, P. M. (1998). Standing in the Spaces: Essays on Clinical Process, Trauma, and Dissociation. Hillsdale, NJ: The Analytic Press.


Bromberg, P. M. (2006). Awakening the Dreamer: Clinical Journeys. New York: Routledge.


Hoffman, I. Z. (1998). Ritual and Spontaneity in the Psychoanalytic Process: A Dialectical-Constructivist View. Hillsdale, NJ: The Analytic Press.


Mitchell, S. A. (1997). Influence and Autonomy in Psychoanalysis. Hillsdale, NJ: The Analytic Press.


Ringstrom, P. (2012). A Relational Psychoanalytic Approach to Couples Therapy. New York: Routledge.


Schore, A. N. (2012). The Science of the Art of Psychotherapy. New York: Norton.


Stern, D. B. (2010). Partners in Thought: Working with Unformulated Experience, Dissociation, and Enactment. New York: Routledge.

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