O que significa ser? Essa é a pergunta que ressoa como um eco interminável tanto na obra de Donald Winnicott quanto em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Para Winnicott, o ser não é algo dado, mas um processo de realização que só se torna possível na experiência viva do encontro, no espaço transicional onde o eu e o mundo se articulam sem se fundirem. Já para Clarice, o ser emerge no confronto radical com o indizível, com o que ultrapassa as margens seguras do sujeito e o lança no abismo de uma existência sem garantias.
Ao longo do romance, G.H., a narradora, descobre na cozinha de seu apartamento, em um canto esquecido da casa, um território de revelações. Ao abrir o armário e encontrar a barata, ela não apenas vê o outro — grotesco, abjeto, inominável — mas é confrontada com aquilo que há de mais essencial e irreconhecível em si mesma. Este momento evoca a ideia winnicottiana de que o ser se constrói na capacidade de suportar a solidão, de permanecer consigo mesmo diante do caos. Em uma das passagens, Clarice escreve:
> "O que me espera é tão grande que não posso suportar ser apenas eu: quero os outros também."
Aqui, o paradoxo do ser é exposto em sua plenitude: para ser, é preciso atravessar a solidão, mas também é preciso reconhecer que o ser só é possível no laço com o outro. Winnicott chamaria isso de "capacidade de estar só na presença do outro", uma das maiores conquistas do amadurecimento psíquico. Mas para G.H., esse amadurecimento não é um processo linear. Ele é violento, disruptivo, como se cada camada do eu precisasse ser despida, arrancada, até que não reste mais nada além de uma essência quase informe, como a gosma da barata esmagada.
Em outro momento, G.H. afirma:
> "Eu estava começando a sentir a presença de algo que era, ao mesmo tempo, meu maior susto e minha maior experiência: eu estava começando a sentir a presença do que existia antes de existir o mundo."
Esse "antes de existir o mundo" dialoga diretamente com a ideia winnicottiana do espaço potencial, aquele lugar que antecede a diferenciação entre realidade interna e externa. G.H., ao se deparar com a barata, não apenas questiona as fronteiras de sua identidade, mas também se lança em uma espécie de regressão simbólica que a conecta com um estado primordial de existência. Assim como no brincar infantil, descrito por Winnicott, G.H. explora os limites do conhecido, mas sem a leveza lúdica do brincar — seu encontro é denso, visceral, marcado por um terror que é, ao mesmo tempo, gerador de sentido.
A barata, por sua vez, pode ser lida como o equivalente clariceano do "objeto transicional" winnicottiano. Ela é ao mesmo tempo repulsiva e fascinante, externa e interna, mediadora de uma experiência que desestabiliza e, paradoxalmente, integra. Ao esmagar a barata, G.H. não a destrói; ela absorve seu significado, tornando-se, em um sentido existencial, a própria barata. Clarice escreve:
> "E eu sentia que nunca me tinham ensinado o que era, de tão simples. Que viver é tão fora de mim que eu me alcanço apenas quando não estou."
Esse "me alcançar quando não estou" remete ao paradoxo do verdadeiro self em Winnicott, que só pode emergir na ausência de defesas rígidas, quando o falso self — construído para atender às demandas do ambiente — é posto de lado. G.H. experimenta a dissolução do falso self e o encontro com algo que não é facilmente nomeável, mas que é, talvez, a experiência mais pura do ser.
Assim, tanto Winnicott quanto Clarice nos convidam a pensar o ser não como algo estático ou definido, mas como um estado em constante negociação entre presença e ausência, entre o eu e o outro, entre a luz e as sombras. A cozinha de G.H. torna-se o espaço transicional por excelência, onde o encontro com o outro — a barata, o indizível — se transforma no encontro consigo mesma, ainda que esse si-mesmo seja apenas um vislumbre, um rastro deixado no espaço potencial da existência.
Criado com auxílio de IA
Comments