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Entre fins e meios: a razão crítica e a razão instrumental no espaço psicoterapêutico

Foto do escritor: Mário BertiniMário Bertini

O consultório é um lugar de suspensões. Aqui, o tempo se estende, se curva, se repete, como um espaço onde o mundo, com suas exigências frenéticas e utilitárias, perde parte de sua força. Porém, mesmo dentro deste enclave de escuta e silêncio, as forças do mundo permanecem: atravessam, modelam, pressionam. A prática psicoterapêutica não é alheia a essas tensões, e uma delas — talvez a mais essencial — é o embate entre a razão instrumental e a razão crítica, dois modos de pensar que se confrontam no cerne da tarefa clínica.


A razão instrumental, com sua busca incansável por eficiência, entra pela porta da clínica de múltiplas formas: a pressão por resultados, a padronização dos sintomas, os manuais diagnósticos que reduzem o sofrimento humano a uma lista de critérios, as escalas de progresso que transformam a experiência subjetiva em números quantificáveis. A promessa que ela carrega é sedutora: oferecer meios precisos e eficazes para resolver os problemas apresentados. Mas há uma sombra nesse modelo. Ao focar exclusivamente no “como fazer” — como aliviar sintomas, como restaurar funcionalidade —, a razão instrumental desvia o olhar do “por quê” e “para quê” se faz.


A razão crítica, por outro lado, não se contenta com respostas técnicas. Ela problematiza os fins. No contexto terapêutico, ela nos obriga a perguntar: a quem servem os métodos que utilizamos? Que tipo de sujeito estamos formando quando aliviamos sintomas sem considerar as forças sociais, políticas e históricas que os produziram? Que lugar ocupamos, como terapeutas, no jogo mais amplo do poder, do controle e da conformidade? A razão crítica exige uma posição desconfortável — uma postura ética que não busca apenas restaurar o paciente ao “normal”, mas questionar o próprio conceito de normalidade.


No espaço da clínica, essa tensão não é abstrata. Surge quando um paciente chega com a expectativa de “se curar” para ser mais produtivo no trabalho, e o terapeuta se pergunta se esse é realmente o objetivo ou apenas uma internalização das demandas de um sistema capitalista extenuante. Aparece na escolha entre seguir um protocolo rigorosamente definido ou escutar as nuances singulares de um sofrimento que resiste às classificações. Manifestam-se, sobretudo, nas decisões silenciosas sobre o que se prioriza: aliviar o desconforto de maneira rápida ou criar um espaço onde o paciente possa questionar as estruturas que sustentam esse desconforto.


O embate entre razão instrumental e razão crítica não é um dilema resolvível. Ele se apresenta como uma oscilação constante, um campo de tensões que, se evitado, leva a práticas clínicas acríticas ou dogmáticas. A psicoterapia baseada exclusivamente na razão instrumental corre o risco de transformar-se em um dispositivo de adaptação: ajuda o paciente a funcionar melhor em um mundo que talvez seja justamente a fonte de seu sofrimento. Por outro lado, uma prática ancorada apenas na razão crítica pode perder-se em abstrações ou alienar o paciente que busca alívio imediato.


Penso, aqui, em um momento com um paciente que havia perdido o emprego. Ele queria “superar a insegurança” para voltar ao mercado de trabalho. Seria fácil reduzir sua demanda a uma questão de autoestima ou ansiedade, aplicar uma técnica breve e eficaz, resolver o “problema”. Mas o que se revelou, na escuta, foi algo maior: a insatisfação com um sistema que o reduzira a números, a sensação de alienação, o desejo não apenas de voltar, mas de transformar. Nesse caso, a razão crítica não foi uma negação da instrumentalidade, mas uma ampliação: ajudou a questionar os fins, e não apenas a otimizar os meios.


O espaço psicoterapêutico, portanto, deve ser um lugar onde ambas as razões coexistam em tensão produtiva. A instrumentalidade pode ser útil para aliviar o sofrimento imediato, mas a crítica é indispensável para impedir que a clínica se torne uma ferramenta de conformidade. Escutar o sofrimento do paciente implica não apenas perguntar o que ele quer mudar, mas por que essas mudanças são necessárias e como elas dialogam com os sistemas nos quais estamos todos inseridos.


A razão crítica, em última instância, é uma aposta na autonomia: a do paciente, a do terapeuta e, talvez, a do próprio processo terapêutico. Ela nos lembra que a tarefa da clínica não é apenas resolver, mas revelar; não apenas curar, mas transformar; não apenas restaurar a funcionalidade, mas criar a possibilidade de uma vida que, por sua singularidade, resista às normas. É um desafio contínuo, mas talvez seja essa tensão — entre meios e fins, entre o imediato e o estrutural — que sustenta a vitalidade do encontro terapêutico.


Criado com auxílio de IA

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