O primeiro passo para ver é ver que há coisas que você não vê. Parece um paradoxo, uma dessas frases que ressoam como armadilhas da lógica, mas que se desdobram em camadas quando lançadas à luz do cotidiano. Ver é um ato que nos engana pela sua aparente transparência. Ao abrir os olhos, acreditamos que o mundo nos é entregue inteiro, mas o que enxergamos é apenas um fragmento – um pedaço moldado pela trama de nossos desejos, pelas sombras de nossa história e pelos limites do que ousamos reconhecer.
André Green dizia que o inconsciente não é apenas aquilo que não sabemos, mas também aquilo que não conseguimos ainda ver, aquilo que permanece fora do campo da linguagem, entre o visível e o invisível. Assim, o ato de ver exige mais do que a abertura dos olhos; requer uma disposição para suportar o vazio, a ausência de sentido que se impõe quando percebemos que, mesmo diante do que está ali, algo escapa, se esconde, sussurra por trás do véu da obviedade.
Quando pensamos que ver é imediato, esquecemos que a visão é sempre mediada – por filtros culturais, por memórias involuntárias, por angústias que desviam nosso olhar. Um exemplo simples: uma rua pela qual passamos todos os dias pode ser um território de revelações inesperadas, mas somente quando algo rompe a rotina – uma chuva que desenha trilhas no chão, um rosto estranho no meio da multidão – é que percebemos o que antes era opaco em sua familiaridade. Não é a rua que muda; somos nós que, por um instante, nos permitimos vê-la para além de nossas categorias habituais.
E é aqui que se encontra o cerne desse movimento: o ato de ver implica reconhecer que há zonas de cegueira, partes de nós e do mundo que permanecem fora de alcance. Isso não é motivo de desespero, mas de curiosidade. Porque, ao aceitar que não vemos tudo, abrimos espaço para o que está por vir, para o encontro com aquilo que ainda não tem nome, forma ou sentido. É a suspensão do já conhecido que permite a criação de novos significados.
Em A Paixão Segundo G.H., Clarice Lispector nos apresenta essa ideia com uma intensidade quase insuportável. Sua protagonista, ao confrontar o desconhecido no espaço íntimo de um quarto, descobre que ver exige coragem, porque implica perder a ilusão de controle, entregar-se à alteridade do que está diante de nós – seja o outro, seja nós mesmos. Ver, no sentido mais radical, é um gesto de abertura e de rendição.
Talvez seja por isso que a psicanálise nos ensine a não confiar na clareza imediata das coisas. Ver requer tempo – o tempo de deixar que o não visto se insinue, o tempo de aprender a suportar o desconforto do que não compreendemos de imediato. Porque aquilo que não vemos é tão importante quanto o que vemos, e é no jogo entre esses polos que algo novo pode surgir.
Assim, o primeiro passo para ver é reconhecer que há algo que não vemos – e, quem sabe, esse reconhecimento seja, ele mesmo, um modo de ver. Não um ver que captura ou define, mas um ver que se abre ao mistério, ao imprevisível, ao outro. Um ver que, ao invés de fechar os olhos sobre o invisível, permite que ele nos transforme.
Criado com auxílio de IA
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