A psicanálise sempre habitou uma zona de tensão, um espaço onde o que não é dito, o que é reprimido, o que escapa à consciência se enrosca como um nó que nunca se desata completamente. Ao revisitarmos a distinção entre a psicanálise clássica, com sua ênfase no conflito intrapsíquico, e a psicanálise relacional, que desloca o eixo para o campo intersubjetivo, percebemos que estamos diante de duas visões que, em suas aparentes oposições, carregam um potencial dialético. Talvez seja possível ir além desse dualismo, encontrando um ponto de convergência que não dissolva as diferenças, mas que revele uma nova forma de compreensão do psiquismo.
A Contraposição: Intrapsíquico vs. Intersubjetivo
Na visão clássica freudiana, a neurose é uma manifestação do conflito interno, uma batalha entre as forças pulsionais, o superego e a realidade externa. Para Freud, o sofrimento psíquico está enraizado na impossibilidade de conciliar o desejo inconsciente com as exigências da civilização. A neurose é, portanto, uma expressão da cisão interna, uma defesa contra o desejo que ameaça romper os diques da censura.
Por outro lado, a psicanálise relacional introduz uma perspectiva que, embora não rejeite o conflito interno, o recontextualiza. Ela propõe que grande parte do sofrimento psíquico emerge de falhas nas relações primárias, de experiências de não reconhecimento e de padrões relacionais que se repetem de forma traumática. Aqui, o foco se desloca da dinâmica interna para o campo intersubjetivo, onde o sujeito se constitui e é constantemente moldado pelo encontro com o outro. O que antes era visto como um conflito exclusivamente intrapsíquico é agora entendido também como uma falha de conexão, uma ruptura nas experiências de vinculação que deixam feridas abertas no tecido da subjetividade.
O Movimento Dialético: Para Além da Oposição
E se, em vez de ver essas duas abordagens como mutuamente exclusivas, pudéssemos entender que elas iluminam diferentes aspectos de uma mesma dinâmica psíquica? E se o conflito intrapsíquico e o campo intersubjetivo fossem dois lados de uma mesma moeda, duas expressões que, ao se entrelaçarem, revelam a complexidade do sofrimento humano?
Proponho que a verdadeira compreensão psicanalítica reside em um movimento dialético, onde o intrapsíquico e o intersubjetivo não são meramente opostos, mas modos complementares de entender a experiência do sujeito. O que está em jogo não é apenas a luta interna entre desejo e censura, mas também como essa luta é moldada e reativada nas relações com os outros.
Por exemplo, a neurose pode ser entendida como uma manifestação de um conflito interno irredutível, onde o desejo é constantemente ameaçado pela censura superegóica. No entanto, essa mesma neurose só se torna plenamente compreensível quando inserida no contexto das relações que constituíram o sujeito — as vozes do superego, afinal, não são abstrações, mas ecoam as vozes de figuras significativas, de experiências vividas que deixaram marcas profundas.
Aqui, o conceito de enactment oferece uma ponte dialética. O que se desenrola no espaço analítico não é simplesmente uma projeção de conflitos internos, mas uma reencenação que envolve tanto o paciente quanto o analista. No enactment, o campo intersubjetivo e o intrapsíquico se cruzam, revelando como os padrões relacionais são, ao mesmo tempo, a expressão de conflitos internos e tentativas de resolução simbólica que se atualizam no presente.
Uma Nova Síntese: A Co-criação do Conflito
Ao integrar essas duas perspectivas, podemos propor uma nova compreensão: o conflito neurótico não é puramente interno nem exclusivamente relacional, mas um processo de co-criação, onde o que é intrapsíquico só se torna significativo em um contexto intersubjetivo. Da mesma forma, o que é relacional carrega sempre o rastro de antigas divisões internas, de desejos e defesas que moldam a forma como nos relacionamos com o mundo.
A clínica, então, não é apenas o espaço para desvelar o inconsciente reprimido ou para sanar falhas no reconhecimento. Ela se torna um campo de experimentação, onde o analista e o paciente colaboram para criar novas possibilidades de simbolização e de existência. É neste espaço que a tensão entre o desejo que nos fragmenta e a necessidade de um outro que nos reconheça encontra sua expressão mais plena.
Freud estava certo ao insistir na importância do conflito interno, mas a psicanálise relacional nos ensina que esse conflito não acontece no vazio — ele é sempre mediado por um outro significativo, que ao mesmo tempo ameaça e possibilita a construção de novas formas de subjetividade. Assim, o trabalho terapêutico não é apenas o de decifrar os mistérios do inconsciente, mas também o de abrir um espaço de encontro, onde o sujeito pode se confrontar com aquilo que nele é mais irredutível e, ao mesmo tempo, mais transformável.
Conclusão: Para uma Psicanálise Dialética
Ao invés de polarizar as abordagens intrapsíquica e relacional, é possível conceber uma psicanálise dialética, que reconheça que o sofrimento humano é uma tapeçaria intricada onde o interno e o externo se entrelaçam continuamente. Essa visão não nega a importância do conflito pulsional, nem reduz a psicanálise à correção de falhas relacionais, mas entende que o sujeito é constituído tanto por suas lutas internas quanto pelas relações que o formaram.
Na prática clínica, isso significa que o analista deve ser capaz de navegar entre essas dimensões, reconhecendo tanto as forças inconscientes que movem o paciente quanto as dinâmicas relacionais que emergem na transferência. A cura, neste sentido, não é a resolução de um conflito ou a reparação de uma relação, mas a criação de um espaço onde o sujeito possa se confrontar com sua própria estranheza, enquanto encontra novas formas de ser reconhecido e de se reconhecer.
Este é, talvez, o potencial mais radical da psicanálise: não resolver o sofrimento, mas transformá-lo em uma abertura para novas possibilidades, onde o que antes parecia ser uma divisão irreconciliável pode, enfim, tornar-se a fonte de uma nova forma de vida.
Criado com auxílio de IA
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