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O eco grandioso da falta: ensaio sobre o self como defesa neuropsíquica





Há um instante, sempre inaugural, em que a criança grita. O grito não é ainda palavra, nem mesmo protesto — é uma vibração atravessada pelo corpo, um traço do que Lacan chamou de real, o que escapa à simbolização. E se não houver ninguém ali para escutar esse grito, ou pior, se aquele que escuta o fizer com frieza, com invasão ou com um narcisismo que inverte os polos do cuidado, o que resta à criança é erigir um espelho. Um espelho turvo, forjado não para refletir, mas para proteger.


O self grandioso nasce nesse intervalo. Não como escolha, mas como urgência. Um dispositivo que cola os cacos de um eu que não se sustenta sozinho, que precisa do olhar do outro como se fosse oxigênio. Heinz Kohut descreveu essa estrutura com precisão clínica: o self grandioso é a tentativa da psique de preservar a coesão narcísica quando os objetos self falham — ou seja, quando aqueles que deveriam sustentar e refletir a experiência interna do sujeito não o fazem de modo confiável. O sujeito, então, se recolhe a um cenário interno em que ele mesmo se torna majestade, invulnerável, ideal.


Mas essa majestade, sabemos, é uma criança assustada com uma coroa pesada demais.


A neuropsicanálise nos permite vislumbrar os contornos mais íntimos dessa defesa. Allan Schore nos mostra que é o hemisfério direito, ainda em formação nos primeiros anos de vida, o principal regulador das experiências afetivas precoces. Quando há falhas de sintonização — quando o rosto da mãe não reflete o afeto do bebê, mas o distorce ou o ignora — o cérebro da criança não aprende a modular estados emocionais intensos. O self grandioso, então, emerge como uma arquitetura de emergência: uma tentativa da mente de evitar o colapso psíquico diante do desamparo.


Na linguagem de Jaak Panksepp, o sistema SEEKING — essa matriz neurobiológica que impulsiona o desejo, a curiosidade, o investimento no mundo — torna-se prisioneiro da lógica da compensação. O sujeito grandioso busca incessantemente, mas não busca por objetos em si; busca por sinais de que existe, de que é digno, de que tem valor. Há um gozo ali, claro — o gozo de ser admirado, de ser centro, de ser visto — mas é um gozo que escorre pelos dedos. Nunca é suficiente. Porque a ferida que alimenta o self grandioso é anterior à linguagem, é pré-verbal, e portanto insaciável por significantes.


No cérebro, esse funcionamento se revela como hiperatividade da Default Mode Network — a rede de modo padrão, associada a processos autorreferenciais, ruminativos, e à construção do self autobiográfico. O narcisismo grandioso seria, então, uma fixação neurorrítmica: um circuito cerebral preso à tarefa desesperada de sustentar uma imagem inflada do eu, contra o colapso iminente de um self despedaçado.


Mas há algo de profundamente humano nesse esforço. O grandioso não é um monstro. É um sobrevivente.


E talvez seja essa a tarefa do analista: não confrontar o delírio, mas escutá-lo. Acolher o exagero como sintoma de uma ausência. Trabalhar na reconstrução de uma capacidade regulatória que foi comprometida desde o início. Criar, no espaço da transferência, novas sinapses afetivas — novas trilhas neurais — que permitam ao sujeito experimentar a queda do pedestal sem a queda no vazio.


A travessia do self grandioso para um self mais integrado, mais vulnerável e real, é também uma travessia de redes cerebrais: do domínio rígido do DMN para uma integração mais fluida com sistemas de empatia, com circuitos de mentalização, com a carne viva da alteridade.


Porque, no fim, o self grandioso não quer ser grande. Ele quer ser tocado. Quer ser escutado no grito que nunca encontrou eco. E talvez a cura — se há cura — resida nesse eco que, enfim, retorna.



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Criado com auxílio de IA.



 
 
 

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