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O gesto inaugural: ensaio sobre o trabalho psicanalítico e o cuidado do psiquismo infantil


Há um momento — um instante que escapa à cronologia — em que a vida, ainda informe, se oferece ao mundo. Não é ainda um sujeito, mas já não é só corpo. É um prenúncio. Uma promessa. Uma espera. Nesse limiar entre o dentro e o fora, entre o que pulsa e o que fala, ergue-se o primeiro gesto clínico, ainda que não nomeado assim: o gesto do cuidado.


A clínica, antes de qualquer técnica, é essa arte silenciosa de escutar o que ainda não tem voz. De acolher o grito que não sabe que é dor, de dar borda àquilo que ameaça esgarçar o tecido tênue da existência nascente. O trabalho psicanalítico — em sua origem mais radical — não começa no divã, mas no colo. Não se limita à escuta do adulto estruturado, mas se funda na presença viva daquele que, ao cuidar, sustenta o impossível de um sujeito em devir.


Facilitar, sustentar, estimular e conter: quatro verbos que desenham, como num bordado fino, a cartografia do cuidado. Facilitar não é forçar, mas abrir passagem. Como quem afasta os galhos para que a luz chegue. Sustentar não é fixar, mas manter-se presente no abalo, como quem segura o galho para que o ninho não caia. Estimular não é agitar, mas oferecer calor, surpresa, vibração. Conter não é impedir, mas dar forma ao transbordamento, fazer do excesso matéria de expressão.


A criança, ao nascer, não nasce apenas do corpo. Nasce também da relação. Nasce do olhar que a reconhece, do gesto que a envolve, do silêncio que a escuta. E ali, nesse entre, se inscreve a função primordial do analista — que é também, em muitos sentidos, a função do cuidador suficientemente bom de Winnicott: aquele que oferece um mundo confiável sem sufocar a liberdade, que se deixa encontrar sem invadir, que se ausenta com delicadeza e retorna com presença.


Roussillon falará da negativação como operação fundante do pensamento, como aquilo que permite transformar a ausência em representação, o vazio em cena, a falta em símbolo. Mas para que o psiquismo possa negativar, precisa primeiro experimentar a presença viva do outro. O bebê só pode tolerar o desaparecimento do objeto se, antes, tiver sido suficientemente encontrado por ele. Só se pode perder aquilo que um dia se teve. Eis o paradoxo ético e clínico do cuidado: é preciso dar para que se possa retirar; é preciso estar para que a ausência tenha sentido.


Em seu diário, Ferenczi escreve como quem sangra: “O trauma é a entrada precoce da realidade brutal sem mediação simbólica.” O trauma — esse excesso bruto — é o oposto da função psicanalítica do cuidado. Se cuidar é mediar, simbolizar, transformar o inassimilável em pensável, o trauma é o colapso dessa mediação. E é por isso que todo trabalho clínico com crianças, e mesmo com os adultos que carregam a criança ferida em seu interior, é também um trabalho de reconstrução das condições mínimas de simbolização.


O analista, nesse quadro, não é o mestre nem o técnico. É o outro-suficientemente-humano que se propõe a estar, a escutar, a não saber, a errar e reparar. Como o cuidador primitivo, o analista oferece não respostas, mas continência; não soluções, mas presença; não manuais, mas uma disponibilidade radical para o encontro com o imprevisível do sujeito.


É nessa disponibilidade que o trabalho analítico se aproxima da arte — não como algo decorativo, mas como aquilo que transforma o informe em forma, o grito em palavra, a ausência em vestígio. A clínica é, assim, um ateliê de subjetivações possíveis, um espaço em que o infans — aquele que ainda não fala — pode, enfim, começar a dizer.


Não se trata, portanto, de aplicar técnicas em nome de uma eficácia qualquer. Trata-se de sustentar a aposta ética de que, mesmo na dor mais primitiva, algo pode ser transformado em linguagem. Que mesmo o desamparo mais radical pode ser, aos poucos, reconvertido em laço.


O trabalho psicanalítico, quando fiel a sua vocação mais profunda, é sempre um trabalho de cuidado. Um cuidado que não é mero afeto, mas gesto ético, compromisso com o outro em sua fragilidade mais crua. Um cuidado que não cura, mas que permite que a cura aconteça — não como apagamento da dor, mas como a possibilidade de lhe dar sentido.


Talvez seja isso, no fim, o mais próximo que possamos chamar de amor na clínica: estar ali, de corpo inteiro, como quem segura o mundo para que uma criança — de qualquer idade — possa começar a viver.



Criado com auxílio de IA

 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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