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O preço invisível: pobreza, reconhecimento e as economias do sofrimento




Há uma cena recorrente nas clínicas da cidade. Uma mulher sentada diante do analista, mãos crispadas sobre o colo, as palavras saindo em espasmos curtos, interrompidos, como se cada frase fosse um abuso de espaço. Ela pede desculpas por ocupar o tempo, por chorar, por sentir. Não há um inimigo claro no relato, apenas um fundo opaco de vergonha, de constrangimento estrutural, como se a própria existência fosse um incômodo social. O analista ouve e, por vezes, hesita: como distinguir o sintoma neurótico da marca histórica? Onde termina a fantasia e começa a ferida da exclusão?


Pierre Bourdieu talvez não ofereça respostas prontas para a clínica, mas oferece lentes. Suas palavras têm a espessura dos sedimentos sociais acumulados sobre cada gesto humano. Falar de pobreza, para ele, é falar de um déficit de capital – não apenas de capital econômico, mas de capital simbólico, de reconhecimento, de legitimidade. Há uma economia subterrânea operando na vida de cada sujeito: uma economia das trocas simbólicas, na qual se joga não apenas o dinheiro, mas o valor invisível de cada olhar recebido, de cada palavra dirigida, de cada lugar concedido ou recusado na cena social.


> "O capital simbólico é a forma desconhecida e reconhecida do capital, disfarçada sob a forma de prestígio, de fama, de honra."

(Bourdieu, "O Poder Simbólico")




Na infância, o pobre aprende cedo que há perguntas que não deve fazer, lugares que não deve ocupar, sonhos que não deve sonhar. A escola, a rua, os espaços públicos, os corpos dos outros – tudo se torna território alheio. Cada tentativa de apropriação é punida com o silêncio, o escárnio ou a correção moral disfarçada de conselho. Não é preciso que ninguém diga: "Você não pertence aqui." O mundo já diz por si, com seus códigos, suas roupas, seus sotaques, suas cerimônias invisíveis de exclusão.


A psicanálise, quando desavisada, corre o risco de psicologizar esse sofrimento. De interpretar a vergonha como uma defesa neurótica, a dificuldade de desejar como um bloqueio edipiano, a raiva crônica como recalque mal resolvido. Mas o que o conceito de violência simbólica de Bourdieu nos ensina é que existe um sofrimento que não nasce apenas da economia libidinal interna, mas de uma economia política do reconhecimento. Não é só o superego que interdita o gozo – é também a história social que interdita o direito ao próprio desejo.


O habitus, esse corpo social incorporado, produz um tipo de sofrimento que se apresenta como destino, mas que é pura contingência histórica solidificada. O pobre não sente apenas falta de dinheiro: sente falta de olhar, de nome, de lugar. Sofre de um déficit de mundo.


Ferenczi, num tempo anterior a Bourdieu, mas com uma sensibilidade rara ao sofrimento social, já intuía esse atravessamento. Em seu "Diário Clínico", ele escreve sobre os efeitos psíquicos do abuso não reconhecido, da experiência traumática que é, sobretudo, a de uma violência sem nome, uma violência que o outro se recusa a ver:


> "A injustiça que permanece oculta é mais destrutiva que a evidente. Quando o sofrimento não é reconhecido, o paciente se afunda na dúvida quanto à sua própria percepção."

(Ferenczi, "Diário Clínico")




Essa citação ressoa de forma quase literal com o que Bourdieu chamaria, décadas depois, de "misrecognition" (desconhecimento social): o processo através do qual o sofrimento é naturalizado, invisibilizado, tratado como falha individual.


A clínica, nesses casos, não é apenas o espaço da interpretação, mas também da restituição simbólica. Um lugar onde o sujeito pode, talvez pela primeira vez, ser escutado como alguém cuja fala tem valor de existência.


Christian Dunker, ao refletir sobre a clínica da pobreza, nos adverte contra o risco de um atendimento que reforça a desigualdade estrutural ao exigir do paciente aquilo que o campo social historicamente lhe negou:


> "O sofrimento do pobre não é apenas falta de recursos, mas uma posição estrutural que determina como o sujeito se inscreve na linguagem, no desejo e na alteridade."

(Dunker, "Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica")




E no entanto, não basta a escuta. Porque a armadilha é dupla: ao dar voz, o analista pode, sem querer, exigir que o paciente se adapte aos códigos de um campo que lhe é estruturalmente negado. Exigir que ele se "autonomize", que "se responsabilize", sem considerar que a autonomia e a responsabilidade também são produtos históricos, efeitos de posição no campo social.


Falar de psicanálise da pobreza com Bourdieu ao lado é reconhecer que cada sintoma carrega a gramática de um campo, que cada silêncio tem o peso de uma história de exclusões sucessivas. É saber que a cura, se houver, não será apenas uma reconfiguração interna do desejo, mas um rearranjo na rede de trocas simbólicas que sustenta a vida.


O paciente pobre não é apenas alguém que sofreu mais. É alguém a quem foi negada, sistematicamente, a possibilidade de ser reconhecido como sujeito de desejo legítimo. A transferência, então, não é só um lugar de repetição, mas também uma chance de deslocamento ético, de reconhecimento ativo, de restituição simbólica.


No fim, talvez o que se negocia na clínica não seja apenas o alívio da dor, mas a lenta reconstrução de um capital invisível: o direito de existir, desejar e falar num mundo que, desde sempre, trabalhou para calá-lo.


Criado com auxílio de IA

 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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