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"O Sol Suficientemente Bom: Narcisismo, Desejo e a Reconciliação com a Incompletude"

Foto do escritor: Mário BertiniMário Bertini

O verso “quando o muito ainda é pouco, você quer infantil e louco, um sol acima do sol”, da música Sol acima do sol, composta por Samuel Rosa e Chico Amaral, captura um aspecto essencial da experiência humana: a busca incessante por algo que transcenda o aqui e agora. Essa imagem de desejo desmedido e insaciável pode ser explorada profundamente à luz do conceito psicanalítico de narcisismo, especialmente na teoria de Otto Kernberg. Nesse terreno, o narcisismo deixa de ser apenas um traço de personalidade para se revelar como um mecanismo defensivo diante de experiências emocionais fundantes marcadas pela falta ou pelo excesso.


Kernberg descreve o narcisismo patológico como um esforço para construir uma sensação de grandiosidade que compense a vulnerabilidade interna. No entanto, essa defesa se forma como resposta a falhas ambientais que, em momentos cruciais do desenvolvimento, não conseguiram sustentar as necessidades afetivas mais básicas do sujeito. Em outras palavras, o “muito que ainda é pouco” não nasce de uma avidez natural ou de uma pulsão ilimitada, mas da ausência de um ambiente suficientemente bom – para usar a expressão de Donald Winnicott – que pudesse acolher, regular e devolver ao sujeito um senso de integridade emocional.


Essas falhas ambientais, frequentemente sutis e cumulativas, podem ser analisadas à luz da teoria do apego. Desde a infância, o ser humano depende de um cuidador sensível e responsivo, capaz de interpretar e atender às suas necessidades afetivas: conforto diante do medo, validação da dor, regulação emocional nas situações de excitação ou frustração. Quando o ambiente falha – seja pela ausência física do cuidador, pela negligência emocional ou por respostas inconsistentes e imprevisíveis –, o cérebro em desenvolvimento é forçado a criar estratégias de sobrevivência psíquica. No caso do narcisismo, uma das estratégias mais comuns é a idealização de si mesmo como uma tentativa de negar a dor da insuficiência e do desamparo.


A neurociência afetiva nos ajuda a compreender como essas experiências precoces deixam marcas duradouras no cérebro. A regulação emocional, mediada por estruturas como a amígdala e o córtex pré-frontal, depende diretamente das interações com figuras de apego. Quando essas interações falham, o sistema límbico pode se tornar hiperativo, levando a uma percepção constante de ameaça ou vazio. O narcisismo, sob essa perspectiva, é um modo de preencher o vazio gerado por essa desregulação emocional, uma tentativa de construir um “sol acima do sol” que possa substituir o calor ausente de um vínculo seguro.


No âmbito da psicanálise relacional, essa dinâmica é entendida não apenas como uma falha do passado, mas como algo que se manifesta continuamente nas relações atuais. As pessoas que desenvolveram defesas narcísicas tendem a buscar nos outros aquilo que o ambiente inicial não forneceu: validação incondicional, admiração, segurança absoluta. Contudo, essas demandas são frequentemente percebidas como excessivas ou irrealistas pelos outros, o que apenas reforça o ciclo de frustração e insatisfação. O "muito que ainda é pouco" é, assim, a marca de uma ferida relacional que continua a se abrir, mesmo diante de novos contextos.


A busca por algo “infantil e louco” no verso da música ressoa com a ideia de um retorno regressivo ao narcisismo primário, aquele estado de fusão com a figura materna em que todas as necessidades eram imediatamente atendidas. Esse desejo por fusão não é apenas uma nostalgia do passado, mas uma forma de tentar escapar da dor de ser um eu separado, incompleto, sujeito às limitações da realidade. A loucura, aqui, é a insistência em negar essas limitações, a recusa em aceitar que o humano é constituído por falta.


No entanto, é possível olhar para essa busca sob outra luz. A aceitação das limitações humanas não precisa ser vivida como uma derrota ou resignação. Pelo contrário, reconhecer que não somos e nem podemos ser completos nos abre para a possibilidade de construir algo genuíno a partir de nossas vulnerabilidades. Na psicanálise relacional, esse processo envolve a capacidade de habitar relações suficientemente boas, que não tentam preencher o vazio, mas sustentam o sujeito em sua incompletude.


A ideia de um ambiente suficientemente bom também pode ser revisitada em nossas relações atuais. Quando somos capazes de oferecer a nós mesmos e aos outros uma escuta empática, uma presença genuína e um espaço para a expressão autêntica de emoções, começamos a reparar as falhas iniciais. O calor de um vínculo seguro não substitui o “sol acima do sol”, mas pode iluminar um caminho mais realista e sustentador.


O otimismo, nesse sentido, reside na possibilidade de transformação. Ainda que o “muito que é pouco” carregue a marca de uma ferida antiga, ele também aponta para o desejo humano de buscar, de crescer, de criar novos significados. A aceitação de nossas limitações não é o fim da busca, mas um redirecionamento dela: do impossível para o possível, do ideal inatingível para a construção concreta de vínculos e experiências que respeitem nossa humanidade.


Assim, ao invés de um vazio insuportável, o reconhecimento de nossa incompletude pode se transformar em um espaço de potência criativa. Não precisamos de um sol acima do sol; basta que consigamos, juntos, nos aquecer com a luz de um sol que é suficientemente bom. Essa é a verdadeira reconciliação que o verso parece nos convidar a alcançar – não uma busca frenética pelo impossível, mas a construção de um sentido possível na aceitação de quem somos.


Criado com auxílio de IA

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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