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Os 90 segundos e o tempo que não passa


Há algo de insuportável na promessa de que uma emoção dura apenas noventa segundos. Como se a dor obedecesse ao cronômetro. Como se o ódio, o amor, o medo, a raiva, se dissolvessem em exatos noventa segundos de descarga neuroquímica. Jill Bolte Taylor, neurocientista e sobrevivente de um AVC, sustenta que esse é o tempo necessário para que uma emoção percorra o corpo em sua forma mais bruta – como evento bioquímico, como tempestade elétrica e hormonal. Depois disso, diz ela, é o pensamento que insiste. A ruminação, a repetição, a memória. A mente que gira como um cão atrás do próprio rabo.

Mas então o que é esse “depois disso”? O que resta quando o corpo já se acalmou, mas a alma não? Que espécie de tempo é esse em que permanecemos presos àquilo que já passou? Freud chamaria isso de repetição. Roussillon, de engrama psíquico. André Green, talvez, de “psicose branca” – esse afeto que, ao invés de explodir, congela, deixando o sujeito à deriva numa temporalidade suspensa.

Há emoções que não cessam porque nunca foram inteiramente vividas. Há dores que se arrastam não porque o corpo as prolonga, mas porque o psíquico não deu conta de representá-las. Nesse sentido, os noventa segundos podem ser apenas o início de uma eternidade.

A temporalidade de uma emoção não é medida apenas pelo seu rastro neuroquímico. É medida também pela sua capacidade de encontrar palavras, imagens, ressonâncias. Uma emoção sem símbolo se transforma em sintoma. E o sintoma, ao contrário da emoção, não tem hora para acabar. Ele dura o tempo que for necessário para dizer o que não foi dito.

Kohut nos ensina que a empatia é a ponte possível entre o bruto da emoção e sua metabolização subjetiva. Quando um outro me escuta, quando meu estado afetivo é validado e refletido, ele pode se transformar. Não mais descarga, mas narrativa. Não mais explosão, mas história. Não mais impulso, mas presença.

Talvez, então, a pergunta não seja quanto tempo dura uma emoção, mas quanto tempo leva até que ela possa ser habitada com dignidade. Talvez a questão não seja o tempo da emoção, mas o tempo da escuta. O tempo da simbolização. O tempo da travessia.

Porque há emoções que duram noventa segundos, e outras que duram uma vida inteira. Não porque seus elementos químicos persistam, mas porque não houve quem pudesse nomeá-las. E enquanto não forem nomeadas, elas vagam. Como fantasmas em busca de casa.


Flutua, entretanto, uma outra camada sobre esses noventa segundos: a dimensão intersubjetiva. Quando Bolte Taylor assinala o limiar bioquímico da emoção, ela não fala do silêncio em que ela se dá, mas do carnaval elétrico que a inaugura. Mas, se a descarga dura apenas noventa segundos, por que a raiva entre amantes estende-se por noites inteiras? Porque, após os noventa segundos, somos chamados a um diálogo: interno ou a dois. É aí que a emoção busca refúgio em objetos externos — o celular que relê mensagens, o olhar que se afasta, a palavra que se cala — e volta a arder. Safatle diria que esse prolongamento indica uma falha na mediação simbólica: não há linguagem suficiente, nem cena suficiente, para conter o que nasce turbilhonado no corpo.


Bem sei que chamamos “emoção” a algo tão diverso que apenas empobreceríamos o nome. Há amores que se prolongam em círculo, que se inventam memórias para não se apagar; há medos que retomam o bolso, que sussurram hipóteses no silêncio do toque; há tristezas que se travestem de nostalgia, pedem permissão ao passado para se tornar poema. Roussillon sugeriria que, em cada um desses casos, existe um engrama que resiste à dissolução: uma inscrição psíquica que escapa à descarga e se replica em imagos, em fragmentos de cena. É ali, na raspagem da memória, que a emoção toma outro fôlego.


De André Green, guardo a ideia de que o afeto pode ficar “branco” — sem cor, sem forma, mas com peso. É esse afeto branco que insiste em nos visitar muito depois dos noventa segundos, não como chama, mas como sombra. E o que a sombra exige? Um trabalho analítico: reconhecimento, nomeação, trama. Como Kohut ensinou, precisamos de um self empático para acolher o fragmento afetivo e torná‑lo parte de uma narrativa contínua. A empatia, então, não é gesto ameno, mas destempero regulado: ela reabre a síntese psíquica onde a emoção sozinha não pode entrar.


Por fim, podemos pensar que os noventa segundos são um convite à responsabilidade. Se a carga neuroquímica é breve, cabe a nós assumir a autoria do que sobra. É nossa escolha prolongar a ira ou plantarmos a compaixão; nosso gesto — interior ou compartilhado — que alimenta o furacão ou traz o silêncio. Nesse sentido, a emoção termina quando encontramos uma linguagem para ela. Porque só aquilo que é dito, ouvido e acolhido deixa de ser fantasma. E, talvez, então, o tempo real de uma emoção não seja cronológico, mas ético: dura enquanto insistirmos em não nomeá‑la.






Criado com auxílio de IA

 
 
 

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