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Foto do escritorMário Bertini

Primeiro Encontro: O Campo Relacional na Sessão Inicial de Casais

A primeira sessão de casal em psicanálise relacional é como o primeiro movimento de uma composição musical: uma abertura que antecipa os temas e dinâmicas que irão se desdobrar, mas ainda carrega a tensão do não dito, do por vir. É um momento denso, carregado de histórias implícitas, olhares desviados, silêncios que se tornam tão eloqüentes quanto as palavras. No fundo, a sessão não é apenas sobre o casal, mas sobre o campo que se forma entre eles e o analista, um espaço que começa a pulsar com os ritmos e as ressonâncias de suas vidas compartilhadas.


O analista, ali, é um observador e um participante, inserido num jogo relacional que o envolve tanto quanto envolve o casal. A abordagem relacional não se coloca como uma intervenção neutra ou objetiva; pelo contrário, ela reconhece que o próprio analista se torna parte da dinâmica, ecoando inconscientemente os padrões que deseja compreender. Sua tarefa não é apenas escutar, mas sentir. Sentir o que emerge no espaço compartilhado, perceber os movimentos que oscilam entre proximidade e distância, entre acolhimento e resistência.


No centro desse encontro está a narrativa. Cada parceiro carrega sua versão da história, fragmentos que, por vezes, não se encontram, mas colidem. Contar a história da relação é construir um espaço onde as vozes podem coexistir, ainda que em dissonância. Quando um parceiro descreve o início da relação como um período de paixão e entrega, enquanto o outro lembra das dúvidas e inseguranças, algo profundo se revela. Não apenas sobre o passado, mas sobre como cada um sente e organiza a experiência da intimidade.


E há também as lacunas — os silêncios, as pausas carregadas de significados não ditos. O que não é narrado é tão importante quanto o que é verbalizado. O analista, atento, observa esses vazios, mas não os preenche; ele os explora, os transforma em perguntas, em possibilidades. Um silêncio diante da menção de um conflito pode indicar vergonha, raiva ou mesmo uma dor que ainda não encontrou linguagem. São nesses momentos que o analista caminha como quem atravessa um terreno desconhecido, atento a cada passo, a cada indício de profundidade.


Há algo de profundamente paradoxal na primeira sessão: ela é um começo, mas também um espelho do que já está em andamento. Os padrões que se repetem na relação do casal tendem a se manifestar ali, no encontro inicial. As interrupções, as alianças silenciosas, as tensões quase imperceptíveis entre os parceiros revelam o que muitas vezes permanece oculto na dinâmica cotidiana. O analista não interpreta imediatamente, mas observa, acolhe e, aos poucos, ilumina o que se desenrola diante de si.


O campo relacional não é um espaço neutro; ele é moldado por forças conscientes e inconscientes que circulam entre o casal e o analista. Uma fala defensiva pode ativar no analista uma sensação de afastamento, enquanto um gesto de vulnerabilidade pode evocar empatia ou mesmo desconforto. Essas respostas emocionais do analista não são apenas ruídos a serem descartados; elas são pistas, indicadores do que está em jogo na relação e no campo compartilhado.


Ao trazer a narrativa para o centro do trabalho, a abordagem relacional não busca apenas reconstituir uma cronologia, mas explorar os afetos e significados que permeiam os eventos da relação. A história do casal não é uma verdade objetiva; ela é um território em disputa, onde cada parceiro luta para fazer sentido do que viveu e vive. Ao contar e escutar, ambos começam a se ouvir de formas que talvez nunca tenham experimentado antes.


Essa escuta é mediada pelo analista, que não apenas registra as palavras, mas também reflete o que escuta, criando um espaço de ressonância. Quando o analista pontua, por exemplo, como um parceiro evita olhar para o outro ao falar de uma traição, ele não está apenas descrevendo um comportamento; ele está introduzindo uma nova possibilidade de consciência, uma brecha na repetição do padrão.


A primeira sessão não resolve, não conclui. Ela abre. Abre perguntas, expõe feridas, mas também insinua caminhos. Para o casal, pode ser um momento de desconforto, mas também de alívio: a sensação de que algo antes insuportável pode finalmente ser nomeado, olhado de frente. Para o analista, é uma entrada em um território que exige delicadeza e coragem, um espaço onde cada palavra, cada silêncio, carrega um peso e uma promessa.


No fundo, o trabalho da primeira sessão não é apenas com o casal, mas com o vínculo — essa entidade quase viva que pulsa entre os dois. É no vínculo que as dores e os prazeres se condensam, que as histórias se encontram e se chocam. O analista, como um mediador desse vínculo, busca não apenas compreender, mas facilitar um movimento que permita ao casal enxergar novas formas de estar juntos.


Ao final da sessão, não há conclusões, apenas um vislumbre do que pode ser possível. Talvez um olhar tenha mudado, talvez uma frase tenha ficado ressoando. O importante é que algo começou a se mover, mesmo que de forma sutil. A primeira sessão é o início de uma jornada — não uma solução, mas uma abertura, um convite para que o casal e o analista, juntos, comecem a desbravar as complexidades do campo relacional que os une e os transforma.


Termino, deixando a vocês uma cena, um breve excerto de como pode se desenvolver uma primeira sessão:


Cena: O começo de uma história interrompida


A sala é iluminada por uma luz suave que atravessa as persianas. O psicanalista, sentado em uma poltrona de tecido discreto, mantém uma postura receptiva, levemente inclinada para frente. Ele observa enquanto o casal entra. Mariana, visivelmente tensa, segura sua bolsa contra o peito como se fosse um escudo. Gustavo, por sua vez, caminha alguns passos atrás, com os ombros curvados e o olhar fixo no chão. Eles se sentam lado a lado, mas o espaço entre eles é palpável, um vazio cheio de significados.


O analista quebra o silêncio inicial com uma pergunta simples, mas carregada de intenção:

— O que trouxe vocês aqui hoje?


Mariana, sem esperar por Gustavo, começa a falar em um tom rápido, quase ansioso:

— Nós brigamos o tempo todo. Ele não me escuta, nunca. Parece que estamos vivendo vidas paralelas. E eu… eu não sei mais se consigo continuar assim.


Gustavo suspira, mas permanece calado. O analista observa o movimento, atento ao peso do silêncio. Após alguns segundos, Gustavo finalmente responde, com um tom defensivo:

— Eu escuto, sim. Só que você quer que tudo seja do seu jeito. Eu não posso nem respirar sem ser criticado.


O analista faz um gesto sutil de assentimento, validando a experiência de ambos sem tomar partido. Ele sabe que está diante de um padrão recorrente: um ciclo de críticas e defensivas que mantém o casal preso em uma dinâmica desgastante. Ele decide explorar mais profundamente, sem apressar o processo:

— Parece que vocês estão descrevendo algo que acontece com frequência entre vocês. Mariana, você sente que não é ouvida. E Gustavo, você sente que é criticado. Estou entendendo corretamente?


Ambos acenam com a cabeça, mas não se olham. O analista percebe a distância emocional e decide investigar a história que antecede esse momento.

— Quero entender melhor como vocês chegaram até aqui. Como era a relação de vocês no início? O que mudou com o tempo?


Mariana hesita antes de responder. Quando começa a falar, há um brilho nostálgico em seus olhos:

— No começo, ele era tão presente… tão carinhoso. A gente conversava sobre tudo, passava horas juntos. Mas depois… eu nem sei quando começou a mudar. De repente, ele estava sempre no celular, ou no trabalho. E eu comecei a sentir que estava sozinha, mesmo quando ele estava ao meu lado.


O analista nota a tensão no rosto de Gustavo e o convida a compartilhar sua perspectiva:

— Gustavo, como foi para você ouvir isso?


Ele solta um riso nervoso antes de responder:

— Eu trabalho muito. Tudo que eu faço é pra gente. Mas parece que nada é suficiente pra ela. Quando eu chego em casa, estou exausto. E aí, em vez de encontrar um momento de paz, é sempre cobrança.


O campo relacional começa a se formar na sala. Mariana enxuga uma lágrima que escorre sem que ela perceba. Gustavo olha para ela de relance, mas logo desvia o olhar, como se a vulnerabilidade dela fosse insuportável. O analista observa esse movimento e decide pontuar:

— Parece que há muito cansaço e muita dor aqui. E talvez vocês estejam tão ocupados tentando lidar com isso sozinhos que fica difícil se encontrarem no meio do caminho.


Mariana solta um soluço abafado, enquanto Gustavo fica imóvel, mas sua mandíbula se contrai. O analista percebe que tocou em algo importante. Ele continua, com um tom gentil, mas firme:

— Vocês mencionaram que brigam muito. Que tipo de situações costumam gerar essas brigas?


Mariana responde quase automaticamente:

— Pequenas coisas. Tipo ele deixar a toalha molhada em cima da cama ou esquecer de responder minhas mensagens.


Gustavo interrompe, o tom irritado:

— Não são as pequenas coisas, é a forma como você fala. É sempre como se eu fosse um idiota que não consegue fazer nada direito.


O analista nota a escalada emocional e decide intervir:

— Acho que essas pequenas coisas podem ser mais significativas do que parecem. Talvez elas carreguem algo maior. Mariana, quando você percebe que ele não responde suas mensagens ou deixa a toalha na cama, como você se sente?


Ela reflete por um momento antes de responder, a voz mais baixa:

— Eu me sinto ignorada. Como se ele não se importasse.


O analista se volta para Gustavo:

— E quando você percebe que Mariana reage assim, como você se sente?


Ele suspira novamente, mas sua voz agora é mais suave:

— Eu me sinto… sufocado. Como se nunca pudesse relaxar.


O silêncio que se segue é denso, mas não é vazio. Algo está começando a se mover. O analista percebe que, pela primeira vez, há uma brecha no ciclo defensivo. Ele escolhe não preencher o silêncio, deixando que os dois permaneçam nesse lugar novo, mesmo que desconfortável.


Ao final da sessão, não há grandes resoluções, mas o analista faz um breve fechamento:

— O que começamos a explorar hoje é o quanto vocês têm vivido essas experiências de maneira isolada, mesmo estando juntos. Meu papel aqui será ajudar vocês a entenderem essas dinâmicas e, quem sabe, encontrarem novas formas de se conectarem.


Mariana e Gustavo saem da sala sem trocar palavras, mas algo mudou. O que parecia uma história interrompida agora é um prelúdio. O campo relacional foi aberto, e o trabalho, ainda que apenas começado, já começou a transformar o espaço entre eles.




Criado com auxílio de IA



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