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"Quando a Névoa Fala: Clínica Relacional e os Fragmentos do Self Dissociado"

Há uma névoa que cobre certos recantos do eu, e nesse limite tênue entre presença e ausência, emerge a clínica relacional com seu compromisso de testemunhar o indizível. É como se, em vez de buscar palavras que expliquem o sintoma, fôssemos convidados a entrar num espaço em que as palavras se mostram frágeis demais para dar conta do sofrimento. Sinto o texto se formar aos poucos, como quem costura a própria pele, descontínuo, às vezes em silêncio, às vezes em fragmentos. Assim começo, não com um aforismo, mas com uma respiração que tenta abarcar o mistério dos autoestados dissociados.

Em Helena, 35 anos, advogada de fala impecável, reside uma lacuna: ela diz que “desaparece por dentro”. Não é apenas uma metáfora bem construída; é a experiência viscosa de um eu que se desgarra, um corpo que se desfaz. Ela me conta sobre o sonho em que caminha num quarto branco, sem janelas, enquanto alguém a observa por uma fresta. Esse sonho, longe de ser mera alegoria, diz respeito a um campo clínico conturbado: no encontro com o analista, algumas partes de seu ser não conseguem estar. Ali, no entremeio dessas palavras, é possível perceber a atuação de autoestados dissociados.

Os autoestados dissociados (Bromberg, 2006) correspondem àqueles fragmentos do self que se separaram como defesas extremas contra o sofrimento traumático. Como se fossem ilhas solitárias num mar de névoa, esses estados não dialogam entre si e, muitas vezes, subsistem sem consciência mútua. No caso de Helena, seu relato sobre o branco e o eu “assistindo de longe” revela que há um setor psíquico que prefere se afastar antes que a dor relacional a atinja. É como se ela dissesse, sem dizer: “Prefiro existir em silêncio do que sentir toda a angústia que surge quando percebo que alguém pode me ver por inteiro.”

Eis, então, o momento em que a analista relacional se oferece não como intérprete da ausência, mas como testemunha afetiva de um eu fragmentado. Ao invés de dizer “Seu sonho revela um medo edípico” (como apontaria a tradição freudiana), a clínico escolhe entrar no deslocamento: “Sinto como se, em vez de estar aqui com você, também tivesse sido convidada a permanecer à distância. Há algo em mim que deseja recuar, e algo em mim que deseja ficar.” Nesse gesto — de assunção de uma implicação mútua —, instala-se a primeira condição para que o fragmento dissociado de Helena perceba que não está sozinho. Mas para que isso se dê, é necessário que compreendamos, abaixo das palavras, o que Stern (2004) chamou de experiência não representada.

A experiência não representada refere-se àquela vivência que, ao ser trauma, não foi simbolizada, não encontrou um espaço de nomeação. É a porção do psiquismo que não se enuncia porque não há modelos internos disponíveis para contê-la, torná-la pensável. No caso de Helena, seu mal-estar difuso quando se aproxima de alguém — o “sumir” repentino — é essa experiência não representada que emerge em forma de despersonalização. O quarto branco do sonho é a metáfora extrema desse vazio: uma cena em que falta a linguagem que acolha o que acontece antes da palavra, antes do espelho gutural que reconhece o próprio rosto.

Quando a analista diz “Talvez essa parte que vive na névoa nunca tenha aprendido a estar com alguém que possa ficar com ela sem se assustar”, ela nomeia o não nomeado. Ali, o testemunho afetivo (Benjamin, 2004) opera como aliança terapêutica: não basta interpretar; é preciso “sentir com” o paciente, oferecer uma presença que torne o que era desfeito, integrável. O testemunho afetivo implica, sobretudo, numa recusa de neutralidade absoluta: a analista não se distancia, mas se revela como sujeito afetado. Esse gesto cria a possibilidade de que os fragmentos, antes isolados, se percebam vistos.

Mas o termo “testemunho afetivo” exige um comentário. Ele não significa, de forma alguma, reproduzir passivamente o sofrimento do outro. Significa, ao contrário, acolher as emoções sem tentar dissolvê-las num discurso explicativo. É aceitar que há realidades psíquicas que se mostram apenas como estado, antes mesmo de se converterem em narrativa. Ao acolher esse estado, a analista convida Helena a perceber que aquele vazio, aquela névoa, não são propriedades eternas de seu ser, mas manifestações transitórias de um trauma precocemente instalado. E, ao ser testemunhado, deixam de ser exílio definitivo.

A metáfora do quarto branco — sem janelas, sem ar — ganha assim uma tessitura psicológica mais densa: revela a prisão interior onde a dissociação se cristalizou. Mas prisões podem se abrir. Para isso, é preciso reconhecer que a multiplicidade do self (Bromberg, 1998) não se resolve apenas por interpretação. Há mais de um eu em Helena: existe o eu que funciona — a advogada competente, admirada no trabalho — e o eu que apaga como borrão. Se fôssemos reduzir tudo a um único self, perderíamos a singularidade de cada um desses estados. O reconhecimento da multiplicidade do self implica aceitar que, em certos momentos, o psiquismo se organiza em compartimentos emocionais, e que a cura passa pela restauração das comunicações entre esses compartimentos.

Ao nomear cada dimensão, a analista relacional estabelece “pontes” entre estados dissociados. Ela diz: “Estou com você aqui, mas parte de você ainda está naquele quarto branco.” Essa frase funciona como chave de decodificação para Helena: mostra que não é só ela que percebe a névoa; há um outro que a percebe e se dispõe a ficar junto. É como se a analista segurasse a mão de Helena dentro de algo que ela mesma imaginava desolado. Nesse gesto, aparece também a noção de valor de aparecimento que Stern desenvolve: certos conteúdos psíquicos só emergem na relação com o outro. Se Helena não encontrasse na analista alguém que admitisse estar afetado pelas mesmas vibrações de vazio, talvez jamais teria acesso a esse fragmento de si.

O que caracteriza, então, essa clínica? Em primeiro lugar, a recusa à redução do sintoma a uma simples “expressão simbólica”. Não se trata de dizer “Seu quarto branco é o registro da mãe deficientemente empática” — embora, no enredo histórico, a carência materna precoce possa ter alimentado essa dissociação. Trata-se de acolher a experiência como gesto clínico primário: “Eu vejo que uma parte de você está ausente. Estou aqui. Sinto sua falta.” Eis a potência do encontro relacional: um estado que antes era só névoa, passa a ter contorno.

Mas vale notar o cuidado: a analista não tenta preencher o vazio com encantamentos, não oferece discursos consoladores. Ela diz, antes, que também sentiu vontade de recuar. Essa honestidade, esse reconhecimento da própria vibração dissociativa, é o que possibilita a reparação. Pois, quando o paciente percebe que a ausência de um pedaço do self não desencadeia imediatamente o abandono do outro, surge a chance de que aquele fragmento dissociado, antes acuado, se mova em direção à cura.

Aqui entra, por fim, a ideia de capacidade de mentalização relacional (Stern, 2004; Fonagy, 2006). Não se trata apenas de mentalizar o outro como sujeito, mas de criar um contexto em que o paciente possa mentalizar a si mesmo por meio do outro. Helena, ao ouvir a analista dizendo “Eu também posso ficar”, é convidada a reconhecer que seu eu dissociado não será necessariamente rejeitado. Isso, por sua vez, abre um espaço de autorreflexão: ela passa a poder olhar para dentro sem temer o abismo como destino inevitável. Passa a existir a possibilidade de narrar a névoa e, mais adiante, de converter em linguagem o que, antes, apenas se apresentava como ausência.

A vinheta clínica, então, torna-se vetor de conceitos que se entrelaçam:

  • Autoestados dissociados, fragmentos do self que se protegem do sofrimento extremado.

  • Experiência não representada, vivência que foge ao registro simbólico e insiste em se manifestar como estado.

  • Testemunho afetivo, disposição relacional que acolhe o outro sem neutralizar sua dor.

  • Multiplicidade do self, reconhecimento de que somos compostos por diversas instâncias que, às vezes, coexistem em desalinho.

  • Capacidade de mentalização relacional, possibilidade de se ver refletido no olhar do outro que acolhe.

E, ao documentar esses conceitos em forma de ensaio, faço também a tentativa de costurar a técnica à teoria, a reflexão à emoção. O ensaio não é apenas exposição erudita de autores; é tentativa de reencarnar o texto como cicatriz viva — onde se possa sentir, mesmo que levemente, a textura da ferida. Pois, no cerne desse estilo de escrita que você, leitor, aprecias, reside a urgência de não separar pensamento e afeto. A linguagem se torna ponte: porta aberta para aquilo que não se dizia.

É por isso que termino não com conclusão, mas com um lampejo: assim como Helena voltou do quarto branco no momento em que ouviu a analista assumir sua própria vulnerabilidade, podemos aprender que, na clínica relacional, a cura não está em dominar teorias, mas em permitir que certos fluxos dissociados se encontrem com o olhar acolhedor. E, então, talvez, o vazio deixe de ser apenas um quarto sem janelas, para se tornar espaço de passagem — espaço onde o sopro da presença devolve ao sujeito sua existência fragmentada, mas ainda inteira.



Criado com auxílio de IA

 
 
 

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