Quando o analista se torna campo: ressonâncias clínicas entre Anne Alvarez e Thomas Ogden
- Mário Bertini
- 19 de jun.
- 4 min de leitura
Há momentos na clínica em que o analista se dá conta de que o silêncio do paciente não é apenas ausência de fala, mas uma espécie de espaço saturado de medo, de não-ser, de um vazio tão denso que as palavras, se viessem sem preparo, apenas violentariam. Nesses momentos, tanto Anne Alvarez quanto Thomas Ogden nos convidam a habitar um lugar ético de espera, de escuta do indizível, mas de uma escuta que age – uma escuta que se torna presença emocional ativa.
I. A criança que não ouve: vitalidade como pré-condição analítica
Em seu livro fundamental "Live Company: Psychoanalytic Psychotherapy with Autistic, Borderline, Deprived and Abused Children", Alvarez descreve o caso de uma menina autista que parecia alheia a tudo:
"Minha voz precisava ser mais viva, mais quente, mais enfática. Não bastava interpretar: era preciso chegar até ela com o tom certo de presença. Meu trabalho era mais com o ritmo e a qualidade da comunicação do que com seu conteúdo inicial."
Essa passagem marca o início de um deslocamento teórico importante: a ideia de que o paciente gravemente desorganizado não precisa, em primeiro lugar, de significado, mas de registro emocional. A voz da analista precisa se tornar, como ela diz, "contingente e responsiva", quase como o eco que segue um chamado perdido.
Thomas Ogden, em "Essa Arte da Psicanálise", descreve um processo semelhante, mas em adultos. Ele relata o caso de um paciente que chegava sempre à sessão num estado de vazio psíquico, de não-pensamento. Ogden descreve como a sessão precisava, primeiro, criar um "espaço potencial", onde a experiência emocional pudesse começar a se formar. Não se tratava de interpretar o vazio, mas de "estar com" o paciente naquele estado, habitando o vazio junto com ele, como uma testemunha encarnada de um sofrimento ainda sem nome".
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II. Do eco à co-criação: da intervenção enfática ao campo intersubjetivo
Enquanto Alvarez trabalha a partir da necessidade de uma intervenção mais intensificada, muitas vezes com crianças que não conseguem simbolizar, Ogden propõe a ideia do "terceiro analítico", um espaço de co-criação emocional que transcende o mundo interno do paciente e do analista individualmente.
Ogden escreve:
"A interpretação é mais um evento emocional do que uma declaração de fato. Ela representa um momento em que analista e paciente co-participam da criação de uma nova forma de experiência emocional compartilhada."
Essa definição ressoa diretamente com a prática de Alvarez nos momentos em que ela, ao trabalhar com crianças muito desorganizadas, precisa criar primeiro um chão comum de afetividade, um campo de ressonância onde ambos possam existir.
Uma vinheta clínica de Alvarez ilustra bem isso: ela conta sobre um menino que, diante de qualquer intervenção verbal, reagia com movimentos estereotipados e autoestimulantes. Foi apenas quando ela modulou sua voz para um tom mais envolvente e rítmico, espelhando o padrão motor do menino com a entonação de sua fala, que ele começou a olhar para ela pela primeira vez.
Essa intervenção é, na prática, a criação de um "campo intersubjetivo primário", conceito que Ogden elaboraria em sua própria linguagem como um espaço de sonho compartilhado, um momento onde ambos os sujeitos – analista e paciente – suspendem as fronteiras rígidas da separatividade psíquica.
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III. O tempo da experiência emocional: entre digestão afetiva e sonho não sonhado
Alvarez trabalha com a ideia de que muitas crianças gravemente afetadas não conseguem realizar o que Bion chamou de "função alfa", ou seja, transformar experiências sensoriais brutas em pensamentos emocionalmente digeríveis. Por isso, o analista precisa funcionar como uma "máquina de digestão emocional" externa.
Ogden, em sua teoria dos "sonhos não sonhados", descreve o mesmo processo em adultos: pacientes que não conseguem sonhar suas experiências, que vivem numa espécie de estado de congelamento afetivo. A tarefa do analista, nesse caso, é "sonhar o sonho pelo paciente", até que ele possa fazê-lo por si mesmo.
Uma citação de Ogden que parece escrita para dialogar com Alvarez:
"O analista muitas vezes precisa sonhar os pensamentos ainda não sonhados do paciente, transformando o não-pensado-emocional em matéria de experiência consciente."
Se Alvarez fala de nomear o afeto para que a criança possa senti-lo, Ogden fala de construir narrativas emocionais para que o paciente possa, um dia, sonhá-las.
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IV. Ética do ritmo: o analista como instrumento emocional
Ambos autores rejeitam a ideia de um analista neutro, distante, que apenas observa. Alvarez se compromete com o tom da voz, com a temperatura emocional de cada intervenção. Ogden se compromete com o ritmo poético da linguagem, com o estilo de suas interpretações, que muitas vezes soam como pequenos poemas clínicos, cuidadosamente esculpidos.
Se quisermos uma imagem final:
Alvarez é o analista que dança no compasso do paciente até que ele aprenda a mover-se sozinho. Ogden é o analista que conta uma história inacabada, deixando que o paciente encontre as palavras que faltam. Ambos, porém, partem do mesmo princípio: a análise é um ato de co-presença encarnada.
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Conclusão:
Anne Alvarez e Thomas Ogden, cada um a seu modo, deslocam a psicanálise para além da interpretação clássica. Suas práticas nos ensinam que há momentos em que o analista precisa ser corpo, voz, respiração; e outros em que precisa ser sonho, metáfora, linguagem criativa. Ambos compartilham um compromisso ético: o de habitar o campo emocional do paciente antes de tentar transformá-lo. Uma psicanálise que, antes de ser uma técnica, é um modo radical de estar com o outro.
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