Quando o traço não se inscreve: o self grandioso e a falha da simbolização primária(com René Roussillon e os vestígios do indizivel)
- Mário Bertini
- 13 de abr.
- 3 min de leitura
Há uma ausência que não se preenche, porque não foi sequer traçada. O self grandioso, em sua superfície cintilante, guarda o segredo de um trauma que não fala — não porque se cala, mas porque nunca chegou a acontecer psiquicamente. O que há ali, sob a couraça narcísica, não é excesso de representação, mas falta de inscrição. Um buraco onde deveria haver traço. Um eco onde deveria haver carne.
René Roussillon, ao retomar e transformar as contribuições de Winnicott e Green, propõe uma teoria do trauma não como excesso, mas como impossibilidade de simbolização. “O trauma é o que rompe o processo de simbolização,” escreve ele, “não por saturação, mas por falha na articulação entre experiência e significação” (Processus et création, 1999). O self grandioso nasce, então, como um encapsulamento da psique frente a esse colapso do sentido. Não há símbolo, não há jogo, não há espaço transicional. Só resta um eu que se agarra à imagem de si como a única certeza possível.
Essa imagem, contudo, é rígida. Não pulsa, não sangra. Não pode ser tocada — e tampouco tocante. O que se vê nos sujeitos marcados por essa formação narcísica não é uma verdadeira presença, mas uma forma de anestesia psíquica: como se a vida fosse apenas representada, jamais vivida. O self grandioso não é tanto uma defesa contra a dor, mas contra o risco de sentir qualquer coisa que desmonte a frágil estrutura erguida no lugar do vivido.
Roussillon propõe que o psiquismo se constitui por camadas de simbolização — da primária à secundária — e que o acesso ao simbólico depende da transformação da experiência em traço. Mas quando essa transformação falha, quando o objeto primário não traduz, não regula, não decifra, a experiência traumática permanece em estado bruto. O sujeito, então, congela-se no que o autor chama de “objetalização do si mesmo”: “uma forma de substituição do processo representacional por um funcionamento imitativo ou mimético, sem verdadeira apropriação subjetiva” (La violence de l’interprétation, 1995, p. 76).
É nesse ponto que o self grandioso revela sua origem trágica: ele é o que resta quando o jogo não pôde acontecer. Ele é a carapaça psíquica de um sujeito que nunca teve espaço transicional para ensaiar-se. Que nunca pôde brincar de ser, porque tudo era risco de desintegração. E sem jogo, sem simbolização, não há subjetivação — apenas repetição.
A clínica, nesse contexto, não pode começar pela palavra. Deve começar pelo corpo. Pelo gesto. Pela presença. O analista é convocado a se tornar, por um tempo, aquele que suporta a experiência crua, aquele que pode emprestar ao sujeito um campo de ressonância onde, aos poucos, o não inscrito encontre sua primeira marca. “A transferência é um lugar onde o paciente poderá viver de novo, com o outro, o que não pôde ser vivido em presença de ninguém,” escreve Roussillon. Viver de novo. Mas, desta vez, com alguém ali.
Só então — e só assim — o self grandioso pode começar a rachar. Não pela violência da interpretação, mas pela delicadeza da experiência partilhada. Pela reconstrução de um espaço onde o gesto do outro não invade nem abandona, mas traduz. Onde o traço pode, enfim, se inscrever. Onde o silêncio já não é vazio, mas espera.
E talvez o mais difícil, nesse processo, seja reconhecer que por trás de toda grandiosidade há um pedido silencioso de tradução. Um apelo para que alguém, enfim, diga aquilo que o sujeito não pôde sequer formular: que ele existiu. Que ele sentiu. Que ele teve dor.
E que essa dor pode ser dita. Porque há agora quem escute.
Criado com auxílio de IA
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