Disciplina é liberdade. Eu me recordo da primeira vez que ouvi esta frase na voz de Renato Russo, tão cheia de uma verdade cortante, como se fosse mais uma daquelas contradições insolúveis da vida. E talvez seja exatamente isso: um paradoxo, uma linha que se curva em si mesma e que, no entanto, leva a algum lugar mais profundo, mais essencial. Porque no fundo, o que significa ser livre? Ser livre de quê? De nossos desejos, que nos arrastam como correntes invisíveis? Ou talvez, da ansiedade que nos devora silenciosamente, nas horas que se estendem infinitas como desertos? A liberdade que a disciplina pode trazer não é aquela do fazer o que se quer, mas a liberdade do domínio sobre o que nos consome por dentro, a capacidade de estar em paz consigo mesmo quando o mundo lá fora nos grita em mil direções diferentes.
Na psicanálise, Nancy McWilliams fala de saúde mental não como a ausência de sintomas, mas como a capacidade de viver uma vida plena, com todas as suas contradições, ambivalências e imperfeições. É a arte de carregar (holding), como diria Winnicott, a sensação de ser real, de estar presente no próprio corpo, mesmo que ele, às vezes, nos pese mais do que gostaríamos. E talvez seja isso que Renato Russo cantava nas entrelinhas de suas letras: a liberdade não como a ausência de limites, mas como a habilidade de criar um espaço interno onde possamos respirar, um lugar onde a dor se transforma em algo mais suportável, onde o desejo deixa de ser um imperativo feroz para se tornar uma escolha, ainda que fragmentada.
A disciplina, então, surge não como um fardo imposto de fora, mas como uma construção interna, um esqueleto que nos sustenta quando tudo ao redor parece desmoronar. É a capacidade de dizer não quando o impulso de dizer sim é quase irresistível, é saber esperar quando a urgência ameaça explodir dentro do peito. A disciplina nos torna donos de nós mesmos, mesmo que nunca possamos estar realmente no controle de tudo o que somos. Ela nos oferece, se não uma garantia de liberdade, ao menos uma promessa, uma espécie de contorno que nos permite desenhar, de forma imperfeita, a nossa própria existência.
E há também a compaixão, esse conceito que, nas palavras de Nancy McWilliams, é fundamental para a saúde psíquica. Compaixão não é pena, não é um sentimento condescendente que nos coloca acima do outro. Não, é um movimento que nos aproxima, que nos faz reconhecer no sofrimento alheio algo de nós mesmos, uma espécie de ponte invisível que atravessa o vazio que nos separa. Ser compassivo é ser forte, não porque suportamos a dor do outro, mas porque conseguimos manter nossa própria vulnerabilidade diante dela. E isso é o que nos mantém verdadeiramente humanos, mesmo quando tudo ao nosso redor tenta nos endurecer, nos transformar em máquinas eficientes, produtivas, insensíveis.
Essa compaixão, então, torna-se uma forma de fortaleza. Ela é o que nos impede de nos perdermos em nossas próprias sombras, porque ao reconhecer a dor do outro, reconhecemos também a nossa, de uma forma menos aterrorizante, menos definitiva. E é aqui que a disciplina e a compaixão se encontram, como dois lados de uma mesma moeda: a disciplina nos dá estrutura, a compaixão nos dá alma. Sem uma, nos tornamos rígidos e insensíveis; sem a outra, frágeis e permeáveis demais ao sofrimento alheio, até o ponto de nos afogarmos nele.
Renato Russo cantava sobre esses paradoxos, e eu penso que é exatamente aí que reside a verdadeira saúde mental, essa ideia tão frágil, tão escorregadia, que nos foge como areia entre os dedos. Ter saúde mental, como sugere Nancy McWilliams, não é alcançar uma perfeição emocional ou a ausência de conflitos internos, mas sim a habilidade de lidar com eles, de suportar o que em nós é imperfeito, incompleto, contraditório. É ser capaz de viver com uma dose de incerteza, de ambiguidade, sem ser destruído por ela.
Porque a saúde mental não é um destino, mas um processo, um caminhar por uma estrada cheia de buracos, de desvios, onde, às vezes, o único mapa que temos é a nossa própria intuição. Disciplina e compaixão são os instrumentos que nos ajudam nessa travessia, não como garantias de que chegaremos a algum lugar seguro, mas como formas de não perdermos a nós mesmos no meio do caminho. É saber que, mesmo quando tudo parece ruir, há algo em nós que permanece, algo que é capaz de resistir, de se adaptar, de transformar a dor em algo que, se não é belo, ao menos é suportável.
E talvez seja exatamente isso que Renato Russo nos ensinou: que ser livre é, paradoxalmente, aceitar os limites da nossa condição, é encontrar, dentro de nós mesmos, uma forma de navegar por este mar caótico que é a existência. A liberdade não como um estado permanente, mas como um movimento constante de construção e reconstrução, onde a disciplina nos dá as ferramentas e a compaixão nos dá o propósito.
No final, talvez a verdadeira saúde mental seja essa dança entre a disciplina que nos sustenta e a compaixão que nos humaniza. Talvez seja isso que nos permita, mesmo diante das maiores adversidades, continuar seguindo em frente, ainda que aos trancos e barrancos, ainda que com medo e incertezas. Porque, no fundo, ser saudável não é ser invulnerável, mas sim ser capaz de continuar se abrindo ao mundo, mesmo quando ele nos machuca, de continuar amando, mesmo quando isso nos despedaça.
E é isso que, no fim das contas, nos torna verdadeiramente livres.
Criado com auxílio de IA.
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