Ser inteiro é suportar as fissuras
- Mário Bertini
- 11 de mai.
- 3 min de leitura
(Ensaio a partir de Fernando Pessoa, Lisa Baraitser e René Roussillon)
Epígrafe: Zadig, personagem do conto filosófico Zadig ou o Destino (Voltaire, 1747), atravessa o mundo em busca de sabedoria e justiça, mas encontra apenas desvio, acaso e desrazão. Seu percurso simboliza uma travessia subjetiva feita não de linearidade, mas de provações e reconciliações precárias — imagem poética de uma ética que se constrói no tropeço.
“Sê inteiro em teu andar; nada teu exagera ou exclui.”Fernando Pessoa nos convoca, com a candura de um aforismo, a uma ousadia silenciosa: sermos plenos em cada gesto, sem inflar contornos nem obviar contornos. Mas o que significa essa inteireza na tessitura daquilo que somos? Entre a nuance do tempo vivido e o pulsar do afeto, surge um campo de tensão: o conflito entre a exigência de totalidade e as forças que nos fragmentam. É aí que a psicanálise, em seus contornos mais contemporâneos, nos conduz – seja pela lente da “espera” engajada de Lisa Baraitser, seja pela poética dos afetos em René Roussillon.
Desde o olhar de Baraitser, o sujeito não é aquele que avança exangue rumo a um eu perfeito, mas aquele que aprende a “suportar” as dissonâncias do existir. Em Enduring Time (2017), ela descreve o tempo não como passagem linear, mas como uma malha de emergências, de interrupções redentoras que nos convocam a uma presença sustentada¹. A inteireza, então, não brota da ação incessante, mas da capacidade de acolher as pausas – essas fissuras onde o organismo psíquico se reconstitui. Assim, não é exagero reter o fôlego diante do caos, nem exclusão descartar a dor que nos lembra da própria finitude.
Mas que lugar o afeto desempenha nessa coreografia de resistência? É aqui que o pensamento de Roussillon encontra o de Baraitser, ampliando a cena. Para René Roussillon, em obras como Psychoanalysis and Affect (2019), o afeto não é simples epifenômeno do inconsciente: é matéria viva, preexistente às narrativas, pulsando como um corpo secreto que se organiza em espaços transicionais². Ao sermos plenos em nosso andar, não é suficiente sermos meros agentes narrativos; precisamos dar morada aos afetos que nos atravessam, sem retirá-los do seu carácter brado ou silenciado.
Repetindo em nós o aforismo pessoano, compreendemos que a inteireza reclama o reconhecimento das polaridades: a ação e a espera, o grito e o silêncio, a expansão e o recorte. Nada do que compõe o nosso ser deve ser jogado na fogueira do ideal: nem a cólera devastadora nem a ternura mínima. Pois, como lembra Baraitser, a urgência de sentir – e, ao mesmo tempo, de conter – constrói um tempo outro, feito de renovações que ocorrem no entrelaçamento do corpo à cena externa¹. E, segundo Roussillon, os afetos, ao transitarem, gravitam entre nós como um ar profundo, demandando espaço sem ser soterrados pela narrativa clínica².
Logo, a inteireza pessoana, à moda de Pessoa, ganha contornos psicanalíticos: é um zadig de continuidade descontínua, que nos impele a não inflar o self em fantasias de poder nem reduzí-lo em chagas de ausência. É aprender, na tessitura afetiva, a mover-se com a leveza dos vírus emocionais: penetrar e retirar-se, acolher e soltar. Entre explanar e suprimir, desenha-se o ritmo concreto do sujeito vivo.
Nesse compasso, o terapeuta torna-se um guardião do tempo intersticial e da dança dos afetos. Ele possibilita que o analisando experimente sua inteireza sem pressa: seja acolhendo o silêncio quando o choro emerge, seja tolerando o vazio quando a fala treme. Sob esse olhar, exagerar ou excluir perdem sua força imperativa, pois a cura não se confunde com a simetria perfeita, mas com a possibilidade de existir inteira em meio à oscilação dos afetos.
Por fim, o verso de Pessoa ecoa como convite paradoxal: ser inteiro em cada passo significa honrar o corpo afetivo e o corpo temporal, sem obliterar as fissuras nem as intensidades que nos definem. A teoria de Baraitser nos ensina que a espera ativa é força criadora; Roussillon nos recorda que os afetos não se submetem a narrativas unívocas. Juntos, eles nos mostram que a inteireza é gesto de coragem e de vulnerabilidade: o caminho pelo qual atravessamos o tumulto interno e retornamos, sempre, ao nosso próprio centro.
¹ Baraitser, L. (2017). Enduring Time: Waiting and the Temporality of Care. Bloomsbury Academic.²
Roussillon, R. (2019). The Deconstruction of Narcissism and the Function of the Object: Explorations in Psychoanalysis. Routledge.
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