A soberania do vazio: entre o
- Mário Bertini
- 13 de abr.
- 3 min de leitura
Há uma soberania silenciosa no narcisismo. Uma soberania que não grita, que não exige, mas que se impõe como atmosfera — densa, indizível, feita daquilo que falta, mas que não pode ser nomeado. O self grandioso, ao contrário do que parece, não se estrutura no excesso, mas no buraco. É uma muralha erguida para conter o nada. E se Kohut nos mostrou o quanto esse nada era o avesso de uma empatia fracassada, André Green, em sua clínica do negativo, leva-nos um passo além: o self grandioso não é apenas uma defesa contra a fragmentação, mas uma condensação pulsional — às vezes viva, às vezes morta.
Green, em seu texto seminal Narcissisme de vie, narcissisme de mort (1983), propõe uma torção essencial: o narcisismo não é unívoco. Ele pulsa em dois registros fundamentais — um que sustenta a vida, outro que a anula. O narcisismo de vida é aquele que ancora o sujeito em sua própria continuidade, aquele que permite investir-se, sustentar-se, amar-se sem dissolução. Já o narcisismo de morte opera como retração, como apagamento — não a destruição do outro, mas o colapso da alteridade em si: “La mort du désir n’est pas la mort du sujet, c’est la vie sous forme de mort” (Narcissisme de vie, narcissisme de mort, p. 190). A vida como morte. O sujeito respirando no vácuo de qualquer desejo.
O self grandioso, sob essa lente, é um ponto de condensação onde os dois narcisismos se sobrepõem. É vida, porque mantém o eu de pé; é morte, porque interdita o outro, sufoca a alteridade, repele o enigma. Green escreve que “le narcissisme de mort est une défense contre la perte, mais qui réalise paradoxalement cette perte en la rendant définitive” (p. 196). Em outras palavras: para não perder de novo, o sujeito se fecha — mas, ao fazê-lo, perde tudo.
Essa soberania vazia que Green nomeia como “pensée blanche” — pensamento branco — é o correlato psíquico de um self que já não deseja. A grandiosidade, nesse contexto, não é mais fantasia de poder, mas ritual de preservação. O sujeito não está vivo no sentido do investimento libidinal; ele está suspenso. Habita uma cena psíquica onde nada toca, nada fere, nada penetra.
E é justamente aqui que Green opera uma ruptura com o narcisismo freudiano e propõe uma economia do negativo: o inconsciente, antes morada do reprimido, passa a ser também o lugar do que nunca se inscreveu. O self grandioso pode ser visto, então, como um selo sobre essa inscrição impossível — um esforço monumental para manter de pé algo que nunca foi simbolizado. “Ce qui n’a pas eu lieu ne peut être perdu, mais c’est pourtant cela qui manque” (Le travail du négatif, p. 62). O que não teve lugar. O que não pôde sequer ser representado. Mas que falta. Que grita.
Na clínica, isso se traduz em silêncios densos, em sessões que giram sem movimento, em pacientes cuja grandiosidade não aparece como exibição, mas como torpor. E o analista, frente a esse negativo, não interpreta — espera. Espera que algo da palavra possa nascer onde antes só havia retração. Espera que o sujeito consinta em perder o que nunca teve, para talvez desejar o que ainda não chegou.
Nesse jogo tenso entre narcisismo de vida e de morte, a tarefa analítica é menos desvelar do que sustentar. Oferecer presença onde só havia retração. Permitir que a cena psíquica se torne novamente espaço de inscrição. O self grandioso, nesse percurso, pode enfim descer de seu trono de gelo e encontrar no outro não um espelho, mas um lugar.
Porque talvez a verdadeira grandeza seja essa: poder desejar sem medo de desaparecer.
Criado com auxílio de IA.
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