Entre o ser e o conhecer: Ogden e o duplo nascimento da experiência analítica
- Mário Bertini
- 2 de nov.
- 3 min de leitura
Há uma cena silenciosa que se repete em cada análise: dois corpos presentes, respirando o mesmo ar, partilhando a vertigem de existir. O que acontece ali — entre o dito e o não dito, entre o que se mostra e o que se recusa — não é apenas a transmissão de um saber sobre o inconsciente. É a invenção de uma forma de ser. É nesse interstício que Thomas Ogden distingue o que chama de psicanálise epistemológica e psicanálise ontológica.
A primeira nasce do desejo de compreender. É a psicanálise que busca conhecer, interpretar, decifrar. Uma psicanálise do saber sobre o inconsciente, fundada na tradição freudiana que quis tornar o enigma humano legível — ainda que parcialmente — pela linguagem. É a dimensão que se move pelo princípio de que o sofrimento pode ser entendido, e que esse entendimento tem valor terapêutico. No entanto, como Ogden insiste, algo essencial se perde quando a análise se torna apenas um processo de conhecimento. Porque conhecer o inconsciente não é o mesmo que existir nele.
A segunda, a psicanálise ontológica, desloca o centro de gravidade do conhecer para o ser. Aqui, o trabalho analítico não visa primariamente à apreensão cognitiva de verdades psíquicas, mas à criação — ou recriação — de uma experiência de ser no espaço da relação. A interpretação, nesse contexto, não busca revelar significados ocultos, mas participar da gestação de um modo de estar vivo. Não é o “o que” é dito que importa, mas “como” algo pode começar a ser sentido, talvez pela primeira vez, no corpo compartilhado da sessão.
Ogden parece dizer que há momentos em que a análise se torna ontologia: quando o analista e o paciente entram numa linguagem anterior à palavra, numa zona intermediária entre o dentro e o fora, entre o eu e o outro. Ali, o inconsciente não é um sistema a ser compreendido, mas uma vida a ser sonhada. O analista não é intérprete, mas testemunha e co-sonhador de um processo de vir-a-ser. Essa é a clínica que se aproxima do que Bion chamava de “sonhar os pensamentos não sonhados” — uma tarefa que é menos cognitiva do que ontológica, pois consiste em dar forma a algo que ainda não encontrou lugar no ser.
Mas há sempre um risco: o de reduzir uma à outra. Quando a psicanálise ontológica esquece a epistemológica, cai no misticismo de um “ser” sem forma, dissolvido na emoção bruta. Quando a epistemológica nega a ontológica, transforma-se em pedagogia do inconsciente, como se bastasse compreender o sintoma para dissolvê-lo. Ogden propõe, então, uma tensão criativa: o analista deve mover-se entre ambas, como quem respira — inspirando o ser, expirando o saber.
Essa alternância é também a estrutura rítmica da própria experiência analítica. O paciente fala para compreender o que sente, mas só pode compreender o que antes foi vivido no corpo relacional do encontro. O saber, então, nasce do ser, e o ser se renova pelo saber — uma espiral, não um círculo.
Há algo de profundamente ético nessa visão. Porque o analista, ao renunciar à posição de mestre do sentido, assume a vulnerabilidade de quem também está sendo transformado. Ele entra na cena não como quem possui o saber, mas como quem se permite sonhar o desconhecido junto. É nesse sentido que Ogden fala de um “terceiro analítico” — uma subjetividade que não pertence a nenhum dos dois, mas que emerge entre eles, como uma nova possibilidade de existência.
Talvez toda análise, em seu ponto mais verdadeiro, seja ontológica porque é criadora: cria o sujeito onde antes havia apenas repetição, cria o tempo onde antes havia paralisia, cria o espaço onde antes tudo era clausura. Mas ela só se sustenta quando conserva algo do olhar epistemológico — a capacidade de pensar, nomear, compreender, e assim dar contorno ao informe.
Entre o ser e o conhecer, o analista habita uma fronteira: aquele instante em que a palavra ainda não nasceu, mas já pulsa. Talvez a psicanálise, no fundo, seja isso — um modo de pensar que só existe quando se arrisca a sentir, e um modo de sentir que só se sustenta quando se deixa pensar.
No limite, a diferença entre a psicanálise epistemológica e a ontológica é a diferença entre compreender o sonho e sonhá-lo. Ogden, ao propor esse deslocamento, não opõe uma à outra; ele nos lembra que o inconsciente é menos um objeto de conhecimento do que um campo de experiência — um espaço onde o ser humano aprende, a cada sessão, a suportar o mistério de continuar sendo.
Criado com auxílio de ia



Comentários