Fragmentos do não-vivido: dissociação, não-representação e trauma cumulativo
- Mário Bertini
- há 1 dia
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Há uma cena clínica que se repete com variações sutis, quase imperceptíveis, mas devastadoras: o paciente conta um fato de sua história como se estivesse falando de outra pessoa, com um tom de voz que não oscila, sem traço de sofrimento ou emoção. As palavras estão lá, a narrativa está ali, mas a experiência psíquica, essa parece ter ficado em algum lugar interditado, separado, intocado. É nesse intervalo entre o que é dito e o que é sentido que a clínica da dissociação, da não-representação e do trauma cumulativo ganha sua espessura.
Bromberg, com sua teoria dos "self-states dissociados", nos alerta que muitos pacientes operam não com repressão, mas com compartimentalizações radicais da experiência. São vidas emocionais que coexistem sem comunicação entre si. Cada estado de self é uma ilha, isolada por um mar de não-dizer e não-sentir. O analista, então, se vê diante de um paciente que, enquanto fala, não habita o que diz. Não se trata apenas de um relato distanciado: é uma experiência de ausência viva.
André Green, por sua vez, nos oferece a categoria da não-representação. Em seu texto sobre o "Complexo de Negatividade" e ao longo de sua obra sobre o "pensamento clínico", Green descreve pacientes em que o vazio não é só ausência de conteúdo, mas uma falha estrutural na capacidade de representação. Algo nunca foi simbolizado, nunca ganhou forma psíquica. O que para Bromberg é uma coexistência de estados fechados, para Green é uma falha no próprio processo de constituição de um continente representacional.
René Roussillon, ao trabalhar a partir de Ferenczi, traz a ideia de trauma cumulativo: não um grande evento catastrófico, mas uma sucessão de pequenas falhas ambientais que vão corroendo a capacidade do sujeito de metabolizar a experiência. Aqui, o que está em jogo é o fracasso repetido da intersubjetividade: o outro que não responde, não reconhece, não sintoniza. Esse acúmulo de micro-violências ambientais resulta naquilo que ele chama de "traumatismo da ausência de reconhecimento".
Essas três teorias se entrelaçam de forma particularmente potente quando pensamos nos pacientes que chegam ao consultório com uma história que parece "sabida, mas não vivida". Há memória factual, mas não há memória emocional. Há narrativa, mas não há afetos que a sustentem. A dissociação, nesse sentido, é o efeito clínico de uma história de não-representações acumuladas, muitas vezes produzidas por um ambiente que nunca foi suficientemente responsivo para transformar a experiência em pensamento.
A clínica, nesse ponto, deixa de ser apenas o lugar da interpretação para se tornar um laboratório de reinscrição afetiva. O analista precisa funcionar como uma espécie de testemunha emocional atrasada, alguém que acolhe o que não pôde ser sentido quando deveria. É como se a sessão analítica se tornasse um espaço de "re-representação" de experiências antigas, congeladas no tempo.
Ogden, ao falar de "sonhar o sonho não sonhado", oferece uma linguagem que também dialoga com esse campo. O paciente que dissocia, que não representa, que sobreviveu a um trauma cumulativo, muitas vezes precisa que o analista sonhe por ele, que crie, em campo transferencial, as primeiras formas rudimentares de sentido. Há uma continuidade entre o não-sonhado de Ogden, o não-representado de Green e os self-states isolados de Bromberg.
Do ponto de vista clínico, a tarefa não é forçar uma integração precoce. Tentar fazer o paciente falar de forma emocional sobre conteúdos dissociados antes da hora é uma forma de violência hermenêutica. O trabalho é o da construção de pontes afetivas entre os estados dissociados, de favorecer a emergência de representações onde antes só havia hiatos. A escuta precisa ser de baixa pressão interpretativa e alta capacidade de sustentação emocional.
O analista, então, torna-se um regulador externo da experiência emocional, como um afinador de instrumentos que, pouco a pouco, devolve ao paciente a capacidade de produzir seus próprios sons psíquicos. O campo transferencial vira o espaço onde o que foi segregado começa, aos poucos, a pedir lugar. Não há uma linha direta de cura, mas um processo espiralado de aproximação.
Se existe um ponto ético comum entre Bromberg, Green e Roussillon, é a recusa em tratar o paciente como um sujeito plenamente unificado e simbolicamente disponível. A clínica, nesses casos, é um trabalho de artesanato emocional, onde o analista precisa suportar longos períodos de não saber, de não ter acesso, de apenas estar ali como presença viva, mesmo quando o paciente parece ausente.
Essa ética da presença encarnada, que vai além da palavra e da interpretação, é talvez a maior lição desse diálogo teórico. Há um tempo para nomear e um tempo para sustentar o não-nomeável. E, muitas vezes, é da escuta silenciosa e paciente desse segundo tempo que nasce, pela primeira vez, a possibilidade de uma verdadeira experiência psíquica.
Criado com auxílio de IA
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