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Foto do escritorMário Bertini

O Corpo Guarda as Marcas e o Enactment: Entre o Corpo e a Repetição

O trauma, como descrito por Bessel van der Kolk em O Corpo Guarda as Marcas, não se limita à lembrança. Ele habita o corpo, molda os gestos, inscreve-se nas posturas e nas ausências de palavras. É uma ferida que não se fecha e que, ao invés de cicatrizar, encontra no corpo um palco para repetir o que não foi simbolizado. Nesse contexto, o conceito de enactment surge como uma ponte fundamental: o lugar onde a memória não dita se encena, onde o passado irrompe no presente, e onde analista e analisando, juntos, se veem convocados a reencenar um fragmento de dor.


O enactment carrega em si a força da repetição. Mas não é uma repetição qualquer: é aquela que se dá porque o trauma não encontrou o simbólico, não se alojou na linguagem. Ele retorna como ato, como corporeidade. Em sua análise cuidadosa do impacto do trauma, van der Kolk nos mostra como a vivência traumática persiste em um registro pré-verbal, alojada nas camadas mais primitivas do cérebro, escapando à narrativa, mas nunca ao corpo. E é nesse terreno que o enactment emerge, como um modo de dar corpo àquilo que nunca pôde ser dito.


No setting analítico, o enactment torna-se inevitável, precisamente porque o trauma não se comunica: ele se reproduz. Van der Kolk fala da necessidade de escutar o corpo, mas escutar o corpo não é um gesto passivo. Exige um trabalho ativo do analista, uma presença que reconheça os gestos, os silêncios e as tensões como tentativas de comunicação. O trauma fala, mas sua linguagem é de outro registro – um registro que atravessa o enactment.


Para o analista, o enactment é tanto uma armadilha quanto uma oportunidade. Ao repetir com o paciente, ele se arrisca a ser tomado pelo mesmo movimento compulsivo que estrutura o trauma, mas é nesse engajamento que o trauma pode, pela primeira vez, ser colocado em palavras. Van der Kolk sugere que a cura do trauma exige um engajamento corporal, um redesenho da experiência somática. O enactment, assim, não é apenas uma reprodução do trauma: é também uma via para sua ressignificação.


A reencenação que ocorre no campo analítico não é consciente. Ela surge como um eco que atravessa as paredes do consultório, um fragmento do passado que encontra no presente uma nova chance de ser vivido de forma diferente. Mas para que isso ocorra, o analista precisa suportar a ambiguidade do enactment. Ele precisa, como nos lembra van der Kolk, ser capaz de habitar o corpo, o seu e o do outro, sem sucumbir à tentação de interpretar rapidamente aquilo que ainda não pode ser plenamente simbolizado.


O corpo, nesse contexto, é central. Ele guarda as marcas, mas também é o lugar onde a mudança pode começar. Van der Kolk descreve como práticas somáticas, como a yoga, podem ajudar os pacientes a recuperar a relação com o corpo. No enactment, essa recuperação se dá na relação analítica: é no corpo-a-corpo simbólico entre analista e analisando que o trauma pode, pela primeira vez, encontrar um espaço de reconhecimento. O corpo, aqui, não é apenas a vítima do trauma, mas seu interlocutor.


Mas o enactment não se limita ao setting analítico. Ele está presente nas relações cotidianas, nas repetições inconscientes que se desenrolam na vida de quem carrega o trauma. A obsessão pelo controle, os rompantes de raiva, o afastamento das conexões afetivas – todos são manifestações de um enactment contínuo, um ciclo que reafirma o trauma em vez de dissolvê-lo. Van der Kolk nos lembra que, para romper esse ciclo, é preciso coragem para enfrentar não apenas a memória, mas também o corpo onde ela habita.


O desafio está em não patologizar o enactment, mas reconhecê-lo como uma tentativa – ainda que imperfeita – de cura. O trauma se repete porque busca ser visto, compreendido, acolhido. No consultório, o analista torna-se cúmplice dessa busca, participando de uma reencenação que só encontra sentido quando é olhada com compaixão e coragem. Como van der Kolk sugere, a cura do trauma passa pelo corpo, e o enactment é uma forma de o corpo pedir ajuda.


Há, no entanto, um risco: o enactment pode cristalizar o trauma em vez de ressignificá-lo. Sem uma presença analítica capaz de conter e interpretar a repetição, o ciclo pode se reforçar. É aqui que a teoria de van der Kolk encontra o campo da psicanálise: ao insistir na importância de escutar o corpo, ele amplia a noção de escuta para além das palavras. O trauma, afinal, não é apenas uma experiência mental, mas um acontecimento encarnado.


Ao conectar O Corpo Guarda as Marcas com o conceito de enactment, percebe-se uma ampliação do campo clínico. A cura não está apenas no insight, mas na possibilidade de viver, no presente, aquilo que o passado paralisou. O analista, ao se engajar no enactment, torna-se não apenas espectador do trauma, mas participante ativo de sua transformação. E é nesse espaço de repetição e reinvenção que o corpo pode, finalmente, começar a guardar outras marcas – marcas de cura, de reconexão, de vida.


No fim, o enactment não é apenas um eco do trauma, mas uma oportunidade de reescrevê-lo. O corpo que guarda as marcas é o mesmo corpo que, em relação, pode começar a esquecê-las. O trauma insiste, mas também convoca. E na reencenação, na repetição que encontra no outro um testemunho, o trauma pode, talvez pela primeira vez, se tornar história.



Criado com auxílio de IA

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