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O sofrimento que liga e o sofrimento que desliga





Há sofrimentos que nos abrem, e sofrimentos que nos apagam.

Uns fazem o mundo ganhar contorno; outros, o dissolvem.

Entre esses dois modos de sofrer — um vital, outro mortífero — desenha-se o mapa secreto da vida psíquica.


Freud pressentiu esse campo quando falou do masoquismo erotogênico: a dor como linguagem primordial do corpo. Green e Rosenberg, décadas depois, recolheram esse pressentimento e o transformaram em pensamento: há uma dor que guarda a vida e outra que a consome. Há um narcisismo que liga e outro que desliga.


O narcisismo de vida, para André Green, é o ritmo interno que mantém o sujeito em contato com o mundo. É a capacidade de investir, de desejar, de arriscar-se ao outro.

Já o narcisismo de morte é o fechamento do circuito: o Eu que prefere a quietude da indiferença à vertigem da relação. É a anestesia como defesa contra o desamparo.


Beno Rosenberg, por sua vez, deu à dor o estatuto de guardiã. O masoquismo guardião da vida é o que nos permite permanecer vivos dentro do sofrimento, sem desabar. É a elasticidade que torna possível esperar, suportar, criar.

Mas quando essa elasticidade se rompe, o que resta é o masoquismo mortífero — a repetição que não simboliza, o sofrer que se tornou hábito, o prazer de anular-se para não sentir mais.


Entre o narcisismo e o masoquismo há um fio invisível: ambos tentam administrar o excesso da pulsão, ambos buscam preservar o Eu diante da ameaça de dissolução. O que os diferencia é o modo como a dor é vivida — como vínculo ou como ruptura.


Esse fio atravessa também o campo dos afetos primários — o apego, essa coreografia inconsciente que o bebê dança com o rosto e o corpo da mãe.

Quando o outro acolhe, quando o olhar responde, a dor do desamparo se torna habitável.

O bebê descobre que pode chorar sem ser abandonado, que o mundo retorna depois da ausência.

É o início do apego seguro, forma emocional do masoquismo guardião e do narcisismo de vida: a confiança de que a dor não é o fim, mas o intervalo entre dois encontros.


Mas quando o outro é imprevisível ou ausente, a dor não encontra eco; o excesso fica sem tradução.

O corpo, então, aprende a proteger-se demais — retraindo-se, anestesiando-se, ou agarrando-se ao outro por medo da perda.

É o apego inseguro, herdeiro direto do masoquismo mortífero e do narcisismo de morte: a tentativa de sobreviver cortando o sentir.


No apego evitativo, o sujeito encena o narcisismo de morte — busca a autonomia como defesa contra o risco da ligação. No apego ansioso, revive o masoquismo mortífero — suporta o sofrimento como única prova de amor possível.

Ambos nascem de uma mesma ferida: o medo de desaparecer quando o outro se afasta.


A diferença está no que o corpo aprendeu a fazer com a dor.

O corpo do apego seguro aprendeu que o sofrimento pode ser contido.

O corpo do apego inseguro aprendeu que o sofrimento precisa ser negado ou exagerado para garantir o vínculo.


Mas há sempre uma centelha que resiste — um resíduo de masoquismo vital que insiste em viver, mesmo quando tudo parece morto. É essa força discreta que sustenta o desejo de análise, o movimento de retorno ao sentir, o trabalho de reabrir o circuito da vida.


O analista, quando escuta, oferece ao paciente a chance de reinvestir a dor no campo do vínculo.

Ao nomear o que antes era puro desamparo, ele ajuda a dor a reencontrar seu destino simbólico — devolve-lhe a função de ponte.

Nesse instante, o masoquismo guardião ressurge: o sofrimento volta a ser uma forma de presença, e não de desintegração.


Entre o narcisismo de vida e o de morte, entre o masoquismo vital e o mortífero, entre o apego seguro e o inseguro, o que está em jogo é sempre o mesmo mistério: como permanecer vivo dentro da dor.

E talvez seja isso o que toda análise tenta ensinar — não a abolir o sofrimento, mas a fazê-lo pulsar, a devolvê-lo ao seu sentido primeiro: o de ser, apesar de tudo, um modo de continuar amando.





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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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