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Entre a sobrevivência e o espelhamento: Winnicott e Kohut



Há um instante, quase imperceptível, em que o outro deixa de ser apenas o prolongamento da nossa própria pele psíquica e começa a pulsar com vida própria. Winnicott chamou isso de “uso do objeto”. Antes dele, havia apenas a relação com um objeto que não se sabia externo, como se o mundo fosse um grande tecido costurado à medida do nosso gesto, respondendo sem demora à nossa fome, ao nosso choro, ao nosso impulso. Mas, então, algo se rompe — e a ruptura é paradoxalmente criadora: no ato destrutivo, simbólico, o bebê arrisca-se a despedaçar esse objeto, e a revelação acontece quando ele sobrevive. Sobrevive sem retaliar, sem desaparecer, sem se vingar. Sobrevive inteiro. E, ao sobreviver, inaugura-se o espaço onde a alteridade pode existir sem ser ameaça.


Kohut, vindo de outro caminho, fala-nos de algo que parece colidir, mas talvez apenas se dobre de outro modo sobre a mesma superfície: o selfobjeto. Aqui, não se trata de conquistar a separação, mas de reconhecer que certas funções do outro — espelhamento, idealização, pertencimento — são necessárias para a própria coesão do self, e não apenas na infância. Não se trata de aprender a viver sem o outro, mas de viver na presença de outros que continuam a nos fornecer algo essencial, uma nutrição silenciosa que não se dissolve com a maturidade. O outro, para Kohut, é parte da estrutura interna, mesmo sendo externo; é incorporado não como lembrança, mas como função viva.


O ponto de contato entre Winnicott e Kohut pode estar naquilo que acontece quando a função do outro só pode se manter se houver alteridade suportável. Não é possível ter um selfobjeto saudável sem reconhecer, ao menos em parte, que ele existe fora de nós, que é uma presença que não podemos manipular completamente, e que, ainda assim, permanece ao alcance da nossa experiência subjetiva. Para Winnicott, a prova dessa alteridade é a sobrevivência ao ataque; para Kohut, é a permanência da responsividade empática mesmo na presença das falhas e frustrações inevitáveis.


Na clínica, essas linhas se entrelaçam como rios que se cruzam apenas em certos trechos. Há pacientes que já atravessaram a passagem winnicottiana: podem destruir o objeto na fantasia e, ao vê-lo vivo, integrá-lo como externo e confiável. Neles, a função de selfobjeto é fluida: o terapeuta pode espelhar, oferecer ideais, sustentar a coesão sem a ameaça constante de colapso. Mas há outros que não chegaram a atravessar o rio: neles, o uso do objeto nunca se consolidou. A função de selfobjeto, nesses casos, não é apenas sustentadora — é também germinadora. Ela oferece uma presença que, ao sobreviver à raiva, à retirada, à indiferença fantasiada, torna-se pela primeira vez um outro confiável, real, que pode ser usado.


Talvez, nesse encontro, Winnicott e Kohut nos mostrem que não se trata de escolher entre independência e interdependência, mas de reconhecer que a verdadeira sustentação emocional só é possível quando a alteridade foi experimentada e aceita. O self, então, pode tanto lançar-se contra o outro e vê-lo permanecer, quanto voltar-se para ele e encontrar-se refletido, fortalecido, aquecido. E é nesse jogo de sobrevivência e espelhamento, de distância e fusão parcial, que se constrói um espaço humano capaz de abrigar a complexidade de ser alguém — sempre incompleto, sempre necessitado, mas também capaz de reconhecer e proteger a vida que pulsa fora de si.




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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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