O erro de Lacan: quando o desejo eclipsa o corpo ferido
- Mário Bertini
- 28 de jun.
- 3 min de leitura
Há um momento em que a teoria se dobra sobre si mesma e se esquece da carne que a fez nascer. Esse momento, na história da psicanálise, tem um nome: Jacques Lacan. Há quem o celebre como herdeiro legítimo de Freud, mas o que se herda nem sempre se honra — às vezes, é o nome que se toma, e não o enigma. Lacan não quis entender Freud: quis refundá-lo à imagem de sua própria vertigem estruturalista. E nisso reside sua falha mais radical.
Desde cedo, Lacan propõe: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Mas não é isso que Freud dizia. Freud fala de representações-coisa, de representações-palavra, da energia pulsional que não encontra descarga, do corpo que retorna no sintoma. O inconsciente freudiano é conflito, é investido, é somático — não apenas uma cadeia significante que desliza entre metonímias. Como denuncia André Green:
> “Lacan substitui o problema da energia por uma teoria do signo. Ele se separa da noção de pulsão para fixar-se no significante.” (Green, La folie privée, 1990)
Lacan, ao privilegiar o simbólico, empobrece o real. Mas não o “real” que ele mesmo reinventa — esse real matemático, sem espessura sensível, sem corpo vivido. O real de Freud, ao contrário, é o da dor, da angústia, do trauma, do sexo como carne, não como estrutura lógica. Lacan teoriza o desejo, mas não escuta a ferida.
Jean Laplanche, com precisão cirúrgica, aponta a torção:
> “O inconsciente de Lacan é um inconsciente do sujeito do significante. O de Freud é o do sujeito dividido pelo trauma do enigma sexual.” (La révolution copernicienne inachevée, 1992)
O retorno a Freud proposto por Lacan é, portanto, um retorno amputado. Amputa-se a cena originária da sedução, apaga-se o enigma da mensagem encravada no corpo infantil. O outro lacaniano é o Outro simbólico, sem carne, sem voz, sem história. Já em Laplanche, o outro é o mensageiro do indizível, é o portador de uma sexualidade enigmática que funda o inconsciente como tradução impossível.
E aqui é impossível não ouvir a voz de Ferenczi, o clínico do excesso, o psicanalista do real traumático. Aquele que soube escutar não apenas o desejo, mas a paralisia do desejo. Em sua Confusão de Línguas, ele escreve:
> “O adulto fala a linguagem da ternura e a transforma subitamente na linguagem da paixão.”
Não há significante que represente esse abismo. Não há metáfora paterna que resolva a cena em que a criança é invadida por uma excitação sem sentido, marcada por uma mensagem sem código. É nesse ponto que Lacan falha — não como equívoco lógico, mas como recusa clínica. Ele não escuta o silêncio do corpo em dissociação.
René Roussillon, cuja metapsicologia é herdeira de Ferenczi e Laplanche, acentua que o psiquismo se constitui a partir de experiências de prazer compartilhado e de traumáticas não-simbolizáveis. Em sua crítica a Lacan, ele é direto:
> “Lacan retira a carne da linguagem, e retira a linguagem da carne.” (Roussillon, Processus de subjectivation, 2007)
Roussillon insiste: o inconsciente não é apenas o que está recalcado pela estrutura, mas aquilo que nunca pôde ser simbolizado, que ficou congelado, encapsulado, que retorna como ato, como falha, como colapso. Lacan não nos dá ferramentas para esse tipo de clínica. Sua teoria da foraclusão não explica o trauma precoce. Sua escuta do significante ignora a corporeidade afetiva do vínculo.
André Green, sempre mordaz, chega a dizer que Lacan cria uma “psicanálise sem afeto”. E completa:
> “A teoria lacaniana funciona como uma máquina lógica — mas a alma humana não é uma equação.” (Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine, 2002)
Não se trata aqui de negar o gênio de Lacan. Mas de denunciar seus efeitos: uma clínica colonizada pela interpretação, uma escuta que se torna surda ao corpo, uma técnica que desinveste o sofrimento em nome do saber. Freud, com toda sua ambiguidade, era ainda clínico. Lacan, por vezes, parece mais filósofo da linguagem.
A pergunta final é clínica: o que fazemos quando alguém nos traz sua dor inominável, seu silêncio colapsado, sua excitação sem nome? Interpretamos o Nome-do-Pai ou oferecemos um espaço onde a palavra pode nascer do corpo despedaçado?
Lacan quis salvar a psicanálise pela lógica, mas esqueceu que ela nasceu da escuta de histéricas, do choro, do sintoma como corpo que fala demais — e não como significante que falta. Seu erro não é de leitura, mas de ética.
Freud não era um estruturalista. Era um clínico da contradição. E é isso que não se perdoa a Lacan.
Criado com auxílio de IA.
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