O momento em que a ilusão cai: self grandioso e a travessia do vazio
- Mário Bertini
- 13 de abr.
- 3 min de leitura
Há um instante na análise em que a palavra não alivia, em que a fala não basta. Um instante em que o sujeito se aproxima do próprio núcleo, e o núcleo — ao invés de revelar uma essência — se mostra como ausência, como ruína, como deserto. Nesse instante, alguma coisa cai. Uma ilusão, talvez. Uma dessas estruturas invisíveis que sustentavam a vida como se fossem verdade. E quando ela cai, o que resta? O que fazer com esse vazio que se revela não como interrupção do ser, mas como condição dele?
A resposta é: quase nada. Porque o self grandioso, que por tanto tempo sustentou o eu como invulnerável, como pleno, como referência de si a si mesmo, agora precisa enfrentar aquilo que sempre evitou: a perda. Mas não a perda de um objeto. A perda de um mundo. Daquele mundo onde o eu era o centro de gravidade, onde as bordas do outro não feriam, onde a dor era administrável porque nunca plenamente sentida.
Heinz Kohut nos ensinou que o self grandioso é uma tentativa de sobreviver à falha. Não à falha comum, mas à falha radical: aquela que desorganiza, que confunde a dor do outro com a própria, que impede a formação de um espelho empático onde o eu possa reconhecer-se e sentir-se vivo. Diante da ausência de uma presença capaz de sustentar, o sujeito erige uma fortaleza. E essa fortaleza — narcisicamente blindada — passa a ser o próprio eu.
Mas essa fortaleza, como nos mostra André Green, é também uma necrópole. Um espaço morto, onde o desejo é suspenso e o pensamento, esvaziado. O narcisismo de morte, em sua forma mais sutil, não é o ódio ao outro, mas o recuo da vida. A recusa de ser afetado. E o self grandioso, nesse quadro, é mais do que defesa: é a encarnação de um negativo. Ele é o avesso do desejo. Ele é o lugar onde o desejo foi impossível.
René Roussillon empurra essa leitura para uma profundidade ainda mais primitiva. Ele nos fala da falha de inscrição: quando o objeto não apenas não acolheu, mas nem sequer esteve presente para que a experiência psíquica se tornasse símbolo. O que resta, então, é a coagulação do eu numa imagem que não se representa — que se repete. O sujeito, ao invés de desejar, repete. Ao invés de sentir, performa. Ao invés de existir, ocupa uma função.
É aí que entra J.-D. Nasio, retomando Lacan, mas com um gesto clínico que se aproxima desses autores: ele nos fala da perda da ilusão como experiência inaugural da análise. A ilusão, diz ele, é aquilo que o sujeito construiu para sobreviver ao real. Perder a ilusão não é um ato de desilusão, mas de travessia: “La perte de l'illusion, c’est le commencement du désir véritable” (Cinq leçons sur la théorie de Jacques Lacan, p. 84). Perder a ilusão é abrir espaço para desejar — não mais sob a proteção do imaginário, mas na vulnerabilidade do simbólico.
E o que se perde, afinal, quando o self grandioso começa a ruir? Perde-se a ilusão de controle, de invulnerabilidade, de completude. Perde-se a ideia de um eu que não precisa do outro. Perde-se o abrigo narcísico que foi, durante tanto tempo, a única forma possível de ser.
Mas algo se ganha. Ganha-se a chance de suportar a falta sem se desintegrar. De desejar o que não se tem. De falar do que não foi. De escutar o que não queríamos ouvir. De tornar-se, enfim, sujeito — e não apenas reflexo.
Nesse processo, o analista não é quem interpreta o sintoma, mas quem sustenta a travessia. Ele é aquele que permanece, que traduz, que escuta mesmo quando não há o que dizer. Ele é, como sugere Roussillon, aquele que encarna o espaço transicional perdido, aquele que oferece presença onde antes houve retração.
E talvez seja essa a verdadeira função da análise: não destruir o self grandioso, mas permitir que ele chore. Que ele desista. Que ele se desfaça, não em ruína, mas em metamorfose.
Porque ao perder a ilusão, o sujeito não perde a si mesmo. Ele, pela primeira vez, se encontra.
Criado com auxílio de IA.



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