A Cartografia do Caos: O Trabalho Silencioso do Eu
- Mário Bertini
- 20 de nov.
- 3 min de leitura
Antes do pensamento, existe o impacto. A vida nos atinge não como uma narrativa organizada, mas como um ruído branco, uma tempestade de sensações, luzes, dores e abalos sísmicos internos. Somos, na origem, matéria sensível bombardeada pelo Real.
O texto de Roussillon nos revela que a sanidade não é um estado natural, mas uma construção laboriosa. O "Eu" não é um rei sentado em um trono; é um cartógrafo desesperado, trabalhando à luz de velas no meio de um furacão, tentando desenhar mapas para não se perder na loucura. Para que o humano possa habitar a si mesmo, esse cartógrafo precisa responder, incessantemente, a quatro perguntas fundamentais. Sem elas, somos apenas carne reagindo ao choque.
Primeiro, o "O Que?".
Esta é a gênese da forma. O sofrimento sem nome é uma tortura infinita; mas a dor nomeada já é uma dor que possui bordas. O trabalho de dizer "isto é tristeza" ou "isto é ódio" é o ato primordial de criação. É quando o Eu retira o monstro da sombra difusa e lhe dá contorno. Sem o "O Que", vivemos no inominável, e o inominável é o terreno do pânico. Nomear é a primeira tentativa de domesticar a besta.
Em seguida, o "Onde?".
Aqui reside a vertigem da identidade. O Eu precisa erguer fronteiras. O grito que ouço vem da rua ou ecoa nos porões da minha própria memória? Essa angústia pertence ao dia de hoje, sob este sol, ou é um fantasma antigo, um luto não chorado que insiste em assombrar o presente? O drama da psicose, ou da simples confusão emocional, é a falha dessa bússola. Saber onde e quando as coisas acontecem é o que nos permite não viver em um eterno "agora" traumático. É o que separa o eu do outro, o ontem do hoje, a alucinação da percepção.
Então, surge o "Como?".
Não basta saber o que é e onde está; é preciso saber o que fazer com a experiência. O psiquismo é um sistema digestivo. Há coisas que engolimos inteiras — as "incorporações" — que ficam dentro de nós como pedras, corpos estranhos que pesam, mas não nutrem. E há o milagre da "introjeção", a verdadeira alquimia psíquica: pegar o que veio de fora, mastigar, dissolver e transformar em parte de quem somos. O "Como" é a arte da hospitalidade interna: transformamos o invasor em hóspede, ou nos tornamos reféns dele? Simbolizar é digerir o mundo para não morrer de indigestão emocional.
Por fim, o imperativo do "Por Quê?".
O ser humano suporta quase qualquer "como", desde que tenha um "porquê". Somos animais viciados em sentido. O caos precisa de uma linha narrativa. O Eu é um tecelão que, diante dos fios soltos do acaso e da dor, tenta tramar uma história. "Isso aconteceu porque...". A busca pela causalidade não é apenas lógica; é uma defesa contra o absurdo. Precisamos acreditar que existe uma ordem, uma coerência, uma lei que rege o sofrimento e o prazer. Sem o "Por Quê", a vida é um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada.
O trabalho descrito por Roussillon é, no fundo, a crônica da nossa sobrevivência diária. A cada minuto, diante de cada alegria ou tragédia, nosso Eu está lá, operando essas quatro alavancas silenciosas. Ele tenta transformar o ruído em música, o trauma em memória, e a carne bruta em verbo. É um trabalho invisível, exaustivo e sagrado: a eterna tentativa de transformar o caos da vivência na casa do pensamento.
Criado com auxílio de ia



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