A Liturgia da Pedra: O Virtuosismo no Eterno Retorno
- Mário Bertini
- 20 de nov.
- 3 min de leitura
Camus nos pediu para imaginar Sísifo feliz apenas por desprezo ao seu destino, uma revolta silenciosa contra o absurdo. Mas há uma possibilidade mais rica, menos estoica e mais estética: e se Sísifo não fosse apenas um prisioneiro, mas um artesão? E se a montanha não fosse uma cela, mas um ateliê, e a pedra não um fardo, mas a matéria-prima de sua Grande Obra?
Quando a punição se repete ao infinito, o tempo deixa de ser uma linha reta e se torna um círculo. E dentro desse círculo, a repetição deixa de ser tédio para se tornar a mãe da habilidade. O Sísifo que imaginamos aqui não empurra a rocha com a resignação de um condenado, mas com a atenção meticulosa de um mestre luthier que talha a madeira, ou de um dançarino que ensaia o mesmo movimento mil vezes até que ele deixe de ser esforço e se torne fluxo.
A Redescoberta da Gravidade
Para este Sísifo, a pedra tem personalidade. Após séculos de contato, ele conhece cada rugosidade do granito, cada veio de quartzo que brilha sob o sol do meio-dia. O prazer do trabalho bem feito nasce da intimidade com o objeto. Ele não luta contra a gravidade; ele dialoga com ela.
Onde um novato veria apenas peso bruto, Sísifo vê vetores de força. Ele desenvolveu uma cinética da ascensão. Ele sabe que, se aplicar a pressão exata no flanco esquerdo da rocha às 10 da manhã, quando o orvalho ainda umedece o caminho, a pedra deslizará com uma suavidade oleosa. Ele descobre que o peso não é um inimigo estático, mas uma energia potencial esperando para ser direcionada.
Variações sobre o Mesmo Tema: A Criatividade na Rotina
Como tornar interessante o ato de empurrar uma pedra montanha acima pela bilionésima vez? Através da micro-variação. A tarefa é banal apenas para quem observa de longe. De perto, cada subida é uma performance inédita.
Eis as possibilidades de ação que transformam o castigo em arte:
1. A Coreografia do Corpo:
Em alguns dias, Sísifo decide não usar a força bruta dos ombros. Ele experimenta empurrar usando o balanço do quadril, transformando a subida em uma valsa lenta. Em outros, ele usa apenas as pontas dos dedos, testando o equilíbrio precário da massa gigante, refinando sua propriocepção. O suor não é de exaustão, é o suor de um atleta no auge de sua performance.
2. A Engenharia do Caminho:
A trilha não é fixa. Sísifo, em sua inventividade, decide que hoje não subirá pela linha reta da menor resistência. Ele desenhará uma espiral ao redor do cume. Amanhã, fará um zigue-zague ritmado. Ele estuda o terreno: onde a terra é fofa, onde a rocha matriz oferece tração. Ele transforma a topografia da montanha em um tabuleiro de xadrez onde ele é, simultaneamente, o jogador e a peça.
3. A Acústica do Atrito:
Sísifo aprendeu a ouvir a música da pedra. Há o som grave e arrastado do granito contra a terra batida; há o estalo agudo quando pedra bate em pedra. Ele começa a modular a velocidade da subida não para chegar ao topo, mas para criar ritmos. Ele compõe sinfonias de atrito. A subida torna-se uma experiência sonora, onde o silêncio da pausa é tão importante quanto o ruído do esforço.
4. A Escultura do Invisível:
Ao rolar a pedra, Sísifo percebe que está polindo-a. Onde antes havia arestas cortantes, agora há curvas suaves adaptadas à palma de sua mão. Ele e a pedra estão se moldando mutuamente. A montanha, marcada pelas trilhas que ele inventou, torna-se uma imensa obra de Land Art, visível apenas para os deuses que, lá do alto, talvez já não assistam por sadismo, mas por curiosidade genuína diante daquele humano que recusou o sofrimento.
O Ápice e o Retorno
O momento em que a pedra atinge o cume e rola inevitavelmente para baixo não é mais o instante da derrota. Para o Sísifo virtuoso, é o momento de análise crítica. Ele observa a trajetória da queda. “Ah,” pensa ele, “ela desviou para a esquerda na descida. Amanhã, corrigirei o eixo de rotação.”
A descida de volta à base da montanha, de mãos vazias, é o seu intervalo, o seu café, o momento de planejar a próxima inovação. O absurdo foi vencido não pela esperança de que a tarefa acabe, mas pela excelência com que ela é executada.
Nesta visão, a experiência humana deixa de ser uma busca por um final feliz ou por um paraíso estático. A vida torna-se o prazer tátil, intelectual e criativo de empurrar a nossa própria pedra — seja ela uma planilha, um jardim, um texto ou uma família — e encontrar, na repetição diária, o espaço infinito para a invenção.
Sísifo sorri. A pedra é pesada, mas ele acabou de ter uma ideia brilhante de como empurrá-la amanhã.
Criado com auxílio de ia



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