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Nuvens, Angústia e a Invenção do Sentido: Uma Aula Sobre o Psiquismo Vivo


A sala estava elétrica, aquela vibração típica de início de semestre. Não escrevi nada no quadro. Apenas caminhei até o interruptor e, sem aviso prévio, apaguei as luzes.

A escuridão repentina silenciou as conversas paralelas.

— Antes de olharmos para fora — minha voz ecoou no escuro —, quero que vocês olhem para dentro. Não pensem. Sintam. Como vocês estão sentados? Onde há tensão? No pescoço? No estômago? Percebam a respiração.

Deixei o silêncio durar trinta segundos. Era o início necessário, inspirado em Marilia Aisenstein: começar pelo corpo, o lugar onde a psique ancora, ou onde ela falha e adoece.

— Abram os olhos — comandei.

Projetei o primeiro slide. Um cumulus clássico, branco e fofo.

— O que é isso?

— Uma nuvem — respondeu alguém rapidamente.

— Apenas isso? — provoquei. — Quem vê apenas "uma nuvem" está preso no que chamamos de pensamento operatório. Está colado ao fato real. É assim que o paciente psicossomático chega: colado na dor, incapaz de sonhar sobre ela. Vamos tentar de novo. Usem a "lente" da infância.

Aos poucos, o gelo quebrou. "Parece um algodão doce", disse um. "Um carneirinho", disse outro. Estávamos entrando na simbolização primária.

Então, mudei o slide. Desta vez, não era uma nuvem fofa. Era um Cumulonimbus cinzento, carregado, quase violento. A atmosfera da sala pesou.

— E agora? — perguntei.

— Parece uma explosão — disse uma aluna.

— Parece o rosto de um velho bravo gritando — arriscou outro.

— Excelente — validei. — Vocês não fugiram. Vocês suportaram ver a agressividade na imagem e deram um nome a ela. Vocês funcionaram como um Continente (Bion). O paciente trará tempestades, e se não pudermos sonhar os pesadelos dele junto com ele, a terapia falha.

Avancei para o próximo slide.

De repente, a tela ficou totalmente branca. Um clarão vazio. Sem nuvens, sem formas. Apenas luz.

O desconforto foi imediato. Risinhos nervosos. Pés batendo no chão. A falta de objeto é insuportável para a mente humana.

— O que vocês veem agora? — insisti.

— Nada — disseram, incomodados. — Acabou o arquivo?

— Sustentem o olhar — pedi. — Esse é o Trabalho do Negativo de André Green. Às vezes, o paciente não traz nuvens nem tempestades. Ele traz o branco. O vazio. O trauma que não deixou rastro, apenas um buraco na psique.

Para sair da angústia do vazio, propus a mudança de dinâmica:

— Virem para o colega do lado. Agora. Sussurrem o que vocês imaginam que poderia aparecer nesse branco. Criem juntos.

A sala se encheu de murmúrios. O que era um vazio assustador tornou-se um espaço de intimidade. As duplas funcionavam como mãe-bebê ou analista-paciente, emprestando rêverie um ao outro para preencher o nada.

Finalmente, coloquei o último slide de nuvens. Uma formação complexa. O grupo, já aquecido e "treinado" pelas etapas anteriores, explodiu em criatividade. Viram dragões, cenas de filmes, batalhas épicas. Riram alto. A sala, antes um aglomerado de corpos tensos no escuro, agora era um Campo pulsante de significados compartilhados.

Acendi as luzes.

Eles piscavam, voltando à realidade, mas estavam relaxados. A tensão corporal do início havia desaparecido.

— Para entender a psicanálise contemporânea — comecei, caminhando entre as carteiras —, basta entender a viagem que fizemos nos últimos dez minutos.

Fui até a tela branca desligada.

— Começamos no corpo, na sensação bruta. Se ficássemos só lá, ou só na descrição meteorológica da nuvem, estaríamos na doença, na somatização. A cura é a capacidade de pegar essa matéria bruta — apontei para o nada — e transformá-la.

— René Roussillon chama isso de apropriação subjetiva. A nuvem é um "meio maleável". Ela deixa vocês a destruírem e recriarem. Quando vocês viram um "velho bravo" na tempestade, vocês pegaram o medo e o transformaram em uma história. Quando sussurraram para o colega diante da tela branca, vocês usaram o laço humano para não serem engolidos pelo vazio.

Para encerrar, projetei a última imagem. Não uma foto, mas a pintura O Castelo dos Pirineus, de René Magritte. Uma imensa rocha flutuando no céu, coroada por um castelo, contra um fundo de nuvens.

— A psicanálise não quer apenas que o paciente veja a realidade. Queremos isso aqui — apontei para a obra de Magritte. — Queremos que ele seja capaz de pegar as nuvens pesadas da vida dele e construir castelos. Queremos sair do sintoma e chegar na obra de arte, na sublimação. Vocês não brincaram de olhar para o céu hoje. Vocês treinaram a única competência que mantém a mente humana viva: a capacidade de sonhar a própria existência.

A sala ficou em silêncio, mas não o silêncio angustiado do slide branco. Era um silêncio cheio, de quem acabara de compreender que a psicanálise, afinal, é uma poética da sobrevivência.



Criado com auxílio de ia

 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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