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O Corpo que Espera, o Corpo que Pulsou

Há algo que sempre retorna quando falamos do corpo: a sensação de que ele pensa antes de nós, que ele antecipa aquilo que ainda não nomeamos, que ele vibra na linha tênue entre o excesso e o esvaziamento, como se a vida fosse uma corda esticada demais sobre o vazio. E talvez seja exatamente aí que Michel Fain se insinuou, nesse lugar inaugural onde a excitação não é ainda sexual no sentido adulto, mas já é intensidade, já é forma, já arrisca ser vínculo. Sempre me impressionou essa ideia: a de que a subjetividade não nasce de um símbolo, mas de um ritmo. Uma oscilação. Uma respiração que só encontra contorno porque outro corpo sustenta a sua queda.


Fain parece nos dizer que tudo começa antes da narrativa, antes da memória organizada, antes da fantasia clara. Começa num território onde a energia pulsa sem dono, onde o bebê é mais mar do que ilha, mais fluxo do que identidade. E é ali, nesse quase-caos, que a excitação se torna uma espécie de antídoto contra a própria dissolução. É paradoxal: aquilo que ameaça é também aquilo que salva. Sem intensidade, não há borda. Sem borda, não há Eu. Sem Eu, o corpo desfaz-se, devolvido ao grande plano fisiológico do qual tentamos, a cada gesto, escapar.


Por isso a ideia de coexcitação e co-repouso é tão exigente e tão bela. O corpo não se excita sozinho, o corpo não descansa sozinho; há sempre uma vibração compartilhada, um pulso que nasce entre dois, nunca dentro de um. A excitação que organiza não é a que invade, é a que encontra ressonância; o repouso que acalma não é o que apaga, é o que acolhe. E me pergunto, às vezes, quantas análises fracassam porque confundimos neutralidade com ausência, e esquecemos que o corpo do analista — silencioso, sim, mas vivo — entra nesse jogo de ritmos, sustentando quedas, permitindo entregas, compondo esse dueto primitivo onde algo do sujeito pode reorganizar-se.


Talvez por isso a posição de espera seja o coração pulsante de Fain. Há algo profundamente humano nesse gesto de esperar sem consumir, desejar sem devorar, sustentar o intervalo como quem cuida de uma brasa que ainda não arde, mas já promete calor. A espera é o território do desejo e, ao mesmo tempo, da proteção contra o colapso. Pacientes psicossomáticos, como Fain nos lembra, não conseguem esperar: descarregam imediatamente ou se desligam, como se a tensão fosse sempre demais, como se a linha entre vida e desorganização fosse curta demais para permitir intervalos. A clínica do corpo é, portanto, clínica da espera. Clínica das microtemporizações. Clínica do quase.


E nesse quase, aparece a lei da constância do objeto: o objeto que volta, que se mantém, que não trai o ritmo nem desaparece quando a excitação nasce. É constância, não perfeição. É presença, não fusão. É uma continuidade que permite que a energia encontre direção, que a fantasia comece a tomar forma, que o corpo deixe de ser apenas descarga. Quando o objeto não permanece, a excitação se dispersa, a fantasia se desfaz antes de virar imagem, o corpo fala. E como fala — fala na pele, fala no intestino, fala na respiração. Fala como se tentasse lembrar aquilo que a psique ainda não conseguiu tecer.


Mas nenhum desses movimentos se sustenta sem o lugar do proibido. É curioso pensar que a interdição, longe de ser obstáculo, é moldura. O “não” imaginário, simbólico ou corporal que desenha o campo possível do prazer. Não existe erotismo sem limite, porque o limite é o que permite o contorno, e o contorno é o que faz da excitação uma promessa, não uma invasão. Fain nos obriga a revalorizar esse interdito delicado, quase artesanal, que protege o sujeito de si mesmo e do outro. Pacientes sem essa borda vivem numa espécie de presente absoluto, onde a excitação ou explode ou apaga — nunca se transforma.


É aí que o narcisismo, em Fain, ganha outra textura: não é grandiosidade, não é defesa, não é amor próprio inflado. É um narcisismo erótico-relacional, tecido na constância do objeto que devolve forma à excitação. O bebê narcisiza-se porque encontra um corpo capaz de acompanhá-lo. A identidade, nesse sentido, é sempre eco. Sempre retorno. Sempre marca de uma presença suficientemente contínua para inscrever ritmo no caos.


E por isso mesmo a desorganização, em Fain, não vem do excesso energético em si, mas da falta de objeto para sustentá-lo. Um corpo deixado sozinho com sua intensidade não enlouquece — desorganiza. Se descola do simbólico, cai na fisiologia, transforma angústia em sintoma somático. Para Marty, há energia demais. Para Fain, há objeto de menos. Essa diferença, pequena em aparência, é absoluta em efeito clínico: mudamos do modelo mecanicista para o modelo erótico-relacional do corpo.


Na esteira disso, a ternura aparece como gesto fundador: a primeira erotização possível, a temperatura emocional que acende sem ferir, que aquece sem invadir. A ternura é o início da fantasia, não sua substituta moralizada. É ela que permite que a excitação encontre textura humana. Sem ternura, a excitação se torna pura descarga; sem excitação, a ternura vira cuidado vazio. A saúde depende dessa interpenetração.


E ao final — sempre ao final — resta a imagem mais radical de Fain: a de que o psiquismo nasce como uma espécie de órgão para suportar a excitação quando o objeto está presente. A mente não é uma abstração, mas um modo de o corpo não se perder. Uma invenção biográfica, somatoafetiva, intersubjetiva, para suportar o que excede. Se o objeto falta, o corpo assume. Se o objeto falha, o corpo sofre. Se o objeto sustenta, o corpo sonha.


Talvez seja por isso que, na clínica, muitas vezes sinto que o que fazemos não é interpretar, mas reconstituir ritmos perdidos — devolver ao paciente a possibilidade de coexcitação e co-repouso, devolver-lhe o direito de esperar sem colapsar, devolver-lhe um proibido que protege e não mutila, devolver-lhe objetos que voltam, mesmo quando a sessão termina. No fundo, estamos sempre tentando reaprender a ser dois para que o paciente possa enfim se tornar um.



Criado com auxílio de IA








 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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