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O DIREITO DE EXISTIR: UM ENSAIO SOBRE O EU QUE RETORNA DO EXÍLIO


Há sempre um ponto de ruptura onde a tessitura da vida se esgarça. Uma dobra, quase invisível aos olhos destreinados, onde aquilo que deveria ter sido acolhido como vida incipiente é devolvido violentamente como ataque. É um lugar onde o gesto mais frágil — um pedido de colo, um olhar que busca encontro, um desejo que mal ousa se enunciar — é lido pelo outro como afronta, voracidade, traição.

Ali, nesse instante microscópico e primordial, não se funda apenas uma neurose; funda-se um interditado. Começa a se formar aquilo que Marion Minerbo nomeia com precisão cirúrgica como supereu cruel. Diferente do supereu edípico, herdeiro da Lei e da cultura, esta instância arcaica não acusa o que fizemos, mas o que somos. Ela não critica o ato moralmente reprovável; ela ataca a existência mesma que ousa pulsar. A sentença desse tribunal interno não é a culpa, é a vergonha de ser.

Diante dessa instância, o Eu não apenas se dobra: ele cliva. Ele racha. O psiquismo, ainda imaturo, ejeta partes de si para sobreviver ao ódio projetado sobre ele — aquele ódio que, na origem, não lhe pertencia, mas que se infiltrou através dos poros de um Eu-pele falho, tornando-se uma segunda natureza.

É nesse terreno devastado, onde a subjetividade foi colonizada pelo desejo mortífero do outro, que René Roussillon entra com sua lanterna teórica. Ele propõe que o Eu só se constitui verdadeiramente se for capaz de realizar quatro operações fundamentais: apropriar, negativar, simbolizar, objetalizar. Mas, sob a tirania do supereu cruel, todas essas operações nascem feridas. O trabalho da análise, portanto, deixa de ser mera decifração de sentidos ocultos para se tornar uma reconstrução ontológica.

A clínica aqui é uma operação de resgate: devolver ao Eu o que lhe foi arrancado e restaurar o direito inalienável de existir.

I. A operação perdida: Apropriação — quando a subjetividade é um território ocupado

A primeira operação do Eu, segundo Roussillon, é a apropriação subjetiva: a capacidade de coincidir consigo mesmo e dizer "isto é meu", "esta dor me pertence", "este desejo sou eu". É a fundação do sentimento de si.

Mas para aquele que foi colonizado por elementos-beta tanáticos — esses dejetos psíquicos indigeríveis que o objeto primário, incapaz de rêverie, evacua maciçamente no bebê — sentir é um ato de alto risco. O sujeito vive uma expropriação radical: seus estados internos não são vivenciados como seus, mas como corpos estranhos, intrusões perigosas.

* Sentir é culposo.

* Desejar é destrutivo.

* Ser é mortal.

A criança aprende cedo a gramática do desmentido: aprende que seus estados afetivos são ofensas ao narcisismo frágil dos pais; que sua vitalidade é uma violência. Para sobreviver, o Eu se exila de si mesmo. Ele se torna um "falso self" não por complacência social, mas por terror.

A apropriação torna-se impossível porque cada emoção já nasce contaminada pelo olhar paranoico do objeto. O sujeito não diz "eu sinto raiva"; ele sente que "há algo mau dentro de mim que destrói tudo".

A intervenção clínica:

A análise precisa operar o que Minerbo chama de função-duplo. O analista deve emprestar seu aparelho psíquico, apagar temporariamente sua alteridade intrusiva, para funcionar como um eco, uma caixa de ressonância limpa. O analista se oferece como uma pele temporária onde os afetos do paciente podem pousar sem serem rechaçados ou julgados.

É uma operação de devolução: o analista recebe o afeto bruto, o desintoxica e o devolve dizendo implicitamente: "Isso é humano. Isso é seu. Você pode ficar com isso".

II. Negativação — a fundação da fronteira no caos da mistura

A segunda operação — a negativação — é a competência de estabelecer a diferença: Eu/Não-Eu, Dentro/Fora, Meu desejo/Desejo do outro. É a capacidade de dizer "não" para poder dizer "eu".

Contudo, quando o objeto primário projeta seus conteúdos persecutórios na criança (o exemplo clássico de Minerbo: a mãe que diz ao bebê que chora "você quer me enlouquecer", transformando o desamparo em sadismo), a fronteira se desfaz. O bebê é forçado a identificar-se com o "mau objeto" projetado nele. Ele se torna o receptáculo do lixo psíquico do outro.

Instala-se a zona de mistura confusional. Não há pele psíquica que separe.

* O bebê é o vaso quebrado.

* O bebê é a depressão da mãe.

* O bebê é a raiva do pai.

Na vida adulta, isso se manifesta como uma "fusão persecutória": o sujeito não consegue rejeitar o que vem do outro porque acredita que é aquilo. A crítica do chefe, o olhar do parceiro, o silêncio do amigo — tudo entra direto na corrente sanguínea do psiquismo, sem filtro, confirmando a tese do supereu cruel: "você não vale nada".

A intervenção clínica:

O analista precisa ocupar o lugar do Terceiro — aquele que corta a fusão alienante. É preciso nomear a origem das cargas. Negativar, na clínica, é um ato quase cirúrgico de separação. É o analista dizendo, através de sua postura e interpretações: "Isso que você sente como culpa sua, na verdade, é a violência que depositaram em você".

É devolver a carga ao remetente. Reintroduzir a fronteira é permitir que o paciente respire oxigênio próprio, e não a atmosfera tóxica de sua história infantil.

III. Simbolização — transformar o terror sem nome em história

A terceira operação — simbolizar — exige um salto qualitativo: transformar a quantidade (intensidade pulsional bruta, angústia agônica) em qualidade (representação, palavra, imagem).

Mas as marcas deixadas pelo supereu cruel e pelos traumas precoces não estão recalcadas (no sentido freudiano clássico); elas estão clivadas. Como nos lembra Roussillon e a psicossomática francesa, o que não foi simbolizado não desaparece: retorna no corpo (doenças, dores) ou no ato (repetição compulsiva).

O trauma não se conta; ele se alucina na transferência. Ele se encena.

Por isso, a interpretação clássica ("você está fazendo isso porque...") é inócua ou, pior, violenta. Explicar para quem está se afogando na angústia soa como crítica.

Só é possível simbolizar depois de muito acolhimento, quando a intensidade da angústia baixa o suficiente para que a palavra possa emergir.

A intervenção clínica:

O analista atua como um tecelão de sentidos. Ao nomear o terror ("devia ser assustador sentir que o mundo ia acabar a qualquer momento"), o analista oferece figurabilidade. Ele dá forma ao caos.

Simbolizar, aqui, não é produzir insight intelectual. É produzir tecido psíquico. É transformar a memória traumática (que é presente eterno) em memória narrativa (que é passado). É fazer com que o indizível deixe de ser um fantasma que assombra e passe a ser uma história que se pode guardar na estante.

IV. Objetalização — a descoberta da alteridade não-assassina

A quarta operação — objetalizar — é talvez o cume da cura nesse contexto. Trata-se de reconhecer o objeto (o outro) como externo, vivo e distinto de si, e — fundamentalmente — capaz de sobreviver à nossa destrutividade.

Para o paciente sob o jugo do supereu cruel, o outro sempre foi uma ameaça:

* Ou o outro é frágil demais e desmorona diante de qualquer demanda (o objeto "porcelana").

* Ou o outro é retaliativo e destrói quem o desafia (o objeto "algoz").

Como reconhecer o outro como um "semelhante" se a alteridade sempre foi vivida como perigo de morte? O paciente evita o vínculo profundo porque "sabe" que, se amar, destruirá ou será destruído.

A intervenção clínica:

Aqui, o analista precisa, na linguagem de Winnicott, sobreviver. Precisa suportar os ataques, a desconfiança, os testes e o ódio do paciente sem retaliar (virar o supereu cruel) e sem desmoronar (virar a mãe deprimida).

Objetalizar é o processo lento de descobrir que o analista continua lá, vivo e benevolente, mesmo depois de ter sido "destruído" na fantasia.

É transformar o monstro projetado em um ser humano imperfeito, mas seguro. É sair do claustro paranoico para habitar um mundo compartilhado.

Entre as quatro operações, uma quinta se insinua: A legitimidade do Ser

Talvez, no fundo, todo esse percurso aponte para algo mais originário do que as funções do Eu. O que está em jogo é a reconquista de uma legitimidade ontológica que o supereu cruel tentou cassar.

A clínica desses estados não visa produzir um Eu "forte" ou "adaptado", nem uma narrativa perfeitamente coerente. O alvo é mais simples e infinitamente mais difícil:

O direito de ocupar um volume no espaço sem pedir desculpas.

Quando a apropriação retorna, o sujeito habita sua própria casa.

Quando a negativação opera, ele descobre que não é a extensão da dor do outro.

Quando a simbolização acontece, a vida ganha cores e matizes, saindo do preto-e-branco do trauma.

Quando a objetalização se firma, a solidão deixa de ser a única defesa segura.

O supereu cruel, que antes gritava ordens de extinção, começa a perder sua voz. A tirania interna enfraquece não por combate direto, mas porque o Eu cresceu o suficiente para não caber mais naquelas velhas roupas de prisioneiro.

Epílogo

Nenhuma clínica se sustenta sem teoria, mas teoria alguma toca a verdade dessa experiência sem a reverência pelas marcas deixadas na carne do sujeito.

O trabalho com o supereu cruel é o mais radical da psicanálise contemporânea. Não porque lida com o inusitado, mas porque desce aos porões onde a humanidade do sujeito foi negada.

É um retorno do exílio. Uma migração ontológica forçada, de volta à terra natal.

É a travessia lenta e dolorosa do ponto onde o Eu foi decretado morto para o ponto onde o Eu, trêmulo e balbuciante, enfim, pode viver.

Ou, sintetizando em um único movimento:

É a reconquista da respiração psíquica.

É o momento sagrado em que o sujeito, olhando para o espelho ou para o analista, percebe com assombro:

Eu existo. E isso não é um crime.



Criado com auxílio de IA

 
 
 

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