A relação entre o trauma psicológico e a noção de tempo pode ser profundamente conectada à obra de Marcel Proust, "À la recherche du temps perdu" (Em busca do tempo perdido). A complexidade temporal abordada no texto encontra eco nas reflexões proustianas sobre memória, experiência e subjetividade, especialmente em como o passado se entrelaça com o presente e, por vezes, impede a construção de um futuro livre.
1. A Descontinuidade Temporal e a Memória Involuntária
Proust, ao explorar a memória involuntária, revela uma forma de temporalidade que transcende a linearidade. Em cenas icônicas como a degustação da madeleine, o passado emerge repentinamente, de forma vívida, no presente. Essa experiência não é apenas uma lembrança, mas uma verdadeira revivescência — um retorno ao instante vivido, como se o tempo tivesse colapsado. Aqui, o que está em jogo é uma estrutura temporal que não se submete à cronologia, semelhante ao "loop temporal" descrito no texto.
Do ponto de vista psicanalítico, a memória involuntária em Proust se assemelha à revivência traumática: o sujeito não evoca conscientemente o passado, mas é subitamente tomado por ele. A experiência é tão intensa que a fronteira entre passado e presente se desfaz. Essa fusão temporal proustiana lembra o conceito de Roussillon sobre o trauma como uma "experiência petrificada", onde o tempo parece se cristalizar em um bloco intransponível.
2. O Trauma e a Compulsão à Repetição
A obra proustiana é permeada pela repetição: a tentativa constante do narrador de capturar a essência da experiência através da escrita é, em si, uma forma de compulsão à repetição. Assim como Freud descreve a Wiederholungszwang (compulsão à repetição) como uma tentativa de integrar o trauma à psique, Proust, ao revisitar incessantemente suas memórias, busca integrar o passado na narrativa de sua vida.
No entanto, assim como no trauma, essa repetição em Proust nem sempre leva à resolução, mas sim a um confronto constante com aquilo que escapa à simbolização. Em "À la recherche...", o narrador luta para capturar o tempo perdido, mas a cada tentativa, ele se depara com a impossibilidade de recuperar integralmente o que se foi. Essa é uma forma de aprisionamento temporal, onde o passado retorna de modo fantasmático, prendendo o sujeito na busca de um sentido que permanece sempre além de seu alcance.
3. Produtividade, Resistência e Tempo
No contexto contemporâneo, o trauma é associado à dificuldade de lidar com a produtividade e a gestão do tempo. No universo de Proust, há uma resistência semelhante à lógica utilitarista do tempo. O narrador, muitas vezes, se entrega a uma procrastinação quase voluptuosa, refletida em sua vida reclusa, longe das exigências temporais e sociais do mundo exterior. Ele se opõe a uma vida orientada pela eficiência, dedicando-se ao que parece, à primeira vista, ser um desperdício de tempo: a reflexão, a rememoração, a escrita.
A procrastinação e a dedicação à escrita, em Proust, podem ser vistas como uma forma de resistência à temporalidade capitalista moderna, onde o tempo é instrumentalizado. O que parece ser uma fuga da produtividade é, na verdade, uma tentativa de habitar um tempo próprio, um tempo subjetivo que permite a emergência de novas formas de sentido. Nesse sentido, a relação entre trauma e procrastinação no texto encontra um paralelo na obra proustiana, onde a "perda de tempo" é, paradoxalmente, uma forma de reconquista da subjetividade.
4. A Reinscrição Temporal como Cura
O processo de cura descrito no texto, que passa pela possibilidade de reinscrever o trauma em uma nova narrativa temporal, também ressoa com a conclusão da obra de Proust. No último volume, Le Temps retrouvé (O Tempo Redescoberto), o narrador finalmente compreende que a verdadeira redenção não está em reviver o passado, mas em transfigurá-lo através da arte. A escrita se torna uma forma de reinscrição temporal, permitindo ao narrador recuperar a continuidade perdida e projetar-se em um futuro aberto.
Assim como a psicanálise busca restaurar uma narrativa que inclui o passado, mas também abre possibilidades para o futuro, a jornada do narrador de Proust é um trabalho de reinterpretação da própria vida, transformando fragmentos de memória em uma totalidade significativa. A obra proustiana, portanto, pode ser lida como uma forma de "cura" no sentido descrito: ao transformar a dor e a perda em criação artística, Proust nos mostra como a temporalidade pode ser recriada e resignificada.
Conclusão: Proust, Trauma e Temporalidade
A análise psicanalítica do trauma, com sua ênfase nas rupturas e na necessidade de reinscrição, encontra um espelho na busca de Proust por um tempo perdido que, embora irrecuperável em termos objetivos, pode ser reinventado no espaço subjetivo da arte e da memória. Assim, tanto o trabalho analítico quanto a narrativa proustiana nos mostram que, diante do trauma, a cura não é uma questão de "superar" o passado, mas de transformá-lo, reinscrevendo-o em uma nova forma de temporalidade que permite ao sujeito habitar o mundo de maneira renovada.
Criado com auxílio de IA
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