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A ferida do excesso e o trabalho do intervalo





Há vínculos que não nascem do calor de um colo suficientemente bom, mas do choque de um estímulo que invade. Não é um vazio inicial que funda o desejo, mas uma superfície em brasa, em que a presença do outro nunca foi moldura, sempre impacto.

É essa a relação excitante de que falam Michel Fain e Denise Braunschweig: um encontro precoce que excita mais do que contém, que seduz e arrebata mais do que cuida.


Na clínica, ela aparece não como lembrança organizada, mas como fissura do envelope psíquico — o corpo pede mais estímulo ou se defende com mutismo; a palavra não dá conta de representar o que não chegou a ser vivido como experiência, apenas como descarga.





Vinheta 1 – “Sem pausa, eu sumo”



M., 27 anos, chegava sempre atrasada e entrava na sessão falando alto, rindo, relatando crises afetivas que iam do êxtase à raiva em poucas frases. Quando eu tentava oferecer silêncio ou perguntar “como é para você parar um instante agora?”, ela se irritava: “Se eu parar, eu desabo. Tenho que continuar ou viro nada.”


Nos primeiros meses, a interpretação parecia ser ouvida como provocação. Comecei a marcar pausas de dez segundos, sustentando-as com a respiração e um olhar constante. Nomeei o que aparecia no corpo: “Notei que você mordeu o lábio quando falamos de pausa.”


Algumas semanas depois, ela entrou dizendo: “Hoje consegui desligar o celular por uns minutos.” O que antes era vivido como ameaça de desaparecimento começou a tornar-se intervalo possível. A sessão deixou de ser excitante e passou a ser um lugar onde o excesso encontrava borda.





Entre o excitante e o transicional



Para Winnicott, a experiência transicional nasce no entre-lugar que permite ao bebê sentir que o objeto “vem de dentro e de fora ao mesmo tempo”. Já na relação excitante não há entre-lugar: há colagem do corpo ao objeto, como se a presença do outro fosse a única prova de existir.


Roussillon propõe que o trabalho analítico é recriar as condições de presentificação do objeto — fazê-lo estar vivo e confiável na experiência — para que depois possa ser re-presentificado, isto é, reaparecer na forma de imagem, lembrança, palavra.


O terciário, na acepção de Fain, Braunschweig e Green, é esse operador silencioso que media o encontro: um ritmo, um gesto, uma regularidade do setting que permite transformar a excitação em jogo.





Vinheta 2 – “Preciso sentir para lembrar”



C., 34 anos, descrevia seu histórico de relações com drogas. Dizia que só lembrava de alguns episódios de sua adolescência quando sentia novamente “a mesma onda”. Nas primeiras sessões, parecia indiferente, mas pedia que eu abrisse a janela ou mudasse a luz, como se buscasse pequenos choques.


Em vez de interpretar de imediato, comecei a comentar a relação entre sensação e lembrança: “Quando a luz muda, vem uma memória.” Aos poucos, ele trouxe lembranças de noites em que a mãe o acordava bruscamente para falar de seus próprios problemas. A excitação da mãe marcava o corpo, mas não deixava traço psíquico.


Na análise, o setting tornou-se esse terceiro: uma regularidade que permitia que os estímulos de outrora, agora re-presentificados, pudessem ser narrados. “Acho que nunca tinha contado isso devagar”, disse ele certa vez.





Do estímulo à narrativa



O que une essas histórias é a transição do excitante ao simbolizável.

No começo, o analista é vivido como objeto excitante ou como ameaça de vazio; precisa então funcionar como continente e regulador, ajustando ritmo, presença e palavra.

Com o tempo, o paciente começa a usar o analista como espaço transicional, onde o que foi só descarga pode virar imagem, jogo, narrativa.


Essa passagem não é linear: muitas vezes há regressões, acting-outs, colapsos do intervalo. Mas é nesse vai-e-vem que o trabalho de ligação, de que fala Roussillon, se realiza.





Vinheta 3 – “A moldura”



L., 41 anos, contava que as brigas dos pais começavam sempre de repente, com barulhos e portas batendo. Nas primeiras sessões, ficava tenso, olhando para a porta do consultório.

Um dia, depois de um silêncio, disse: “Quando você para assim, sinto que algo vai explodir.”

Respondi: “Talvez estejamos sentindo juntos a falta de uma moldura, que protege do estouro.”


Começamos a usar a palavra “moldura” como um jogo: ao final de cada sessão, ele escolhia uma frase ou imagem que “moldurava” a semana. O termo virou símbolo de borda — o que antes era puro alerta passou a ser um elemento de ligação e de memória.





Reflexão final



A relação excitante nos lembra que nem todo sofrimento vem da falta; muitos nascem do excesso sem mediação.

A psicanálise relacional, ao dialogar com Roussillon, nos ensina que o analista não deve repetir a excitação nem impor interpretação como violência, mas criar condições de jogo e pausa.


Nessas pausas, a memória volta, o corpo encontra contorno e o que antes só queimava como estímulo começa a habitar a linguagem.

O trabalho analítico é, assim, uma arte de inventar intervalos, onde o excitante se torna história e a história, cuidado.



Pacientes autorizaram o uso de suas histórias clínicas que foram devidamente modificadas para preservar suas identidades.


Criado com auxílio de IA

 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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