“A gente entende o que ouve, nunca o que houve.” — inspiração em Oswald de Andrade
- Mário Bertini
- 25 de out.
- 4 min de leitura
Há algo de profundamente psicanalítico nessa torção da escuta — entre ouvir e haver. Como se o tempo da compreensão se desse sempre no presente da voz, e nunca no passado do acontecimento. Entendemos o que ouvimos porque só podemos compreender aquilo que ainda ressoa, o que ainda vibra no espaço transferencial da palavra. O que houve — o fato, o trauma, o acontecimento — permanece como um eco, não como uma narrativa. É no ouvido do outro que o vivido encontra forma, não na lembrança do que aconteceu.
Na tradição francesa da psicanálise, especialmente em autores como André Green, Pontalis, Roussillon e Aulagnier, há uma insistência em que a escuta analítica é sempre uma escuta do acontecer psíquico e não do acontecimento histórico. O que chega ao analista não é o passado, mas sua repetição simbólica, seu retorno em forma de som, gesto, silêncio. A palavra do paciente é sempre uma reencenação: ela não fala do trauma, ela o faz acontecer de novo sob o disfarce da linguagem.
Ouvir é, portanto, uma forma de sonhar o que não pôde ser sonhado. O analista francês não busca a verdade factual — o que houve — mas a verdade do afeto, o traço mnêmico que se condensa e se desloca na fala. Como diz Roussillon, o trabalho analítico consiste em transformar o vivido não simbolizado em experiência representável. Para isso, é preciso uma escuta que se desfaça da pretensão de decifrar fatos, e se disponha a ser afetada, contaminada, excitada pela fala do outro.
Quando Oswald inverte o verbo, ele denuncia a impossibilidade de uma coincidência entre o que aconteceu e o que se entende. Toda compreensão é uma traição criativa. Há uma beleza nessa traição — porque é ela que permite o nascimento do sentido. O analista, como o poeta, precisa consentir em não saber, em se deixar levar pela musicalidade da fala. Escutar o que ouve é aceitar que o sentido não está no passado, mas no encontro presente entre duas presenças: a que fala e a que escuta.
No campo relacional, essa diferença ganha densidade. O que se ouve emerge entre dois sujeitos que se afetam mutuamente. A compreensão nasce no entre, não em nenhum dos polos isoladamente. O “ouvir” é um ato criativo, uma coautoria da memória. Por isso, o que houve — o passado — só pode ser reconstruído a partir do que se ouve agora, do modo como o acontecimento reverbera na relação. Não há lembrança sem interlocutor; não há história sem o calor de uma escuta.
Freud já intuía isso ao dizer que o inconsciente não conhece o tempo. O que houve nunca cessa de acontecer. A cada sessão, o passado se reinscreve, pedindo uma nova tradução. A linguagem é o meio dessa tradução infinita. Mas a língua, como o amor, nunca dá conta de tudo. Sempre sobra um resto — o houve que não se deixa ouvir. É nesse resto que habita o real, aquilo que insiste em não se deixar domesticar pela compreensão.
A escuta analítica, então, é uma escuta do indizível. Ela se dirige ao que está por vir no que foi dito. Quando o analista se deixa afetar, algo se transforma: o que era ruído torna-se palavra; o que era dor muda de cor e de textura. É o milagre discreto da transferência — o momento em que o houve se converte, por um instante, em ouve.
Em termos roussillonianos, poderíamos dizer que a análise é o lugar onde o sujeito tenta reencontrar um parceiro interno capaz de ouvir aquilo que antes só produzia excitação bruta. O analista encarna esse parceiro possível, não para reconstruir o passado, mas para reconstituir a experiência de ser escutado. O trabalho não é arqueológico, é relacional. O sentido nasce não do que foi desenterrado, mas do que foi ouvido em comum.
Há algo de profundamente ético nessa postura: renunciar ao domínio sobre o sentido. Como dizia Pontalis, “ouvir é hospedar o que vem do outro, sem tentar reduzi-lo ao que já se sabe”. Entender o que se ouve é, assim, um gesto de hospitalidade, de acolhimento do inédito. O que houve, por sua vez, é o impossível de hospedar — o estrangeiro radical da experiência.
No fundo, talvez a frase de Oswald de Andrade seja a confissão de um analista. Porque na análise, como na poesia, o que importa não é o passado, mas o ritmo, o som, a textura da voz que insiste. Entendemos o que ouvimos — e é nesse entendimento que o que houve, finalmente, encontra alguma forma de existência.
Assim, o ouvido é o lugar onde o passado se reencarna. A escuta torna-se uma segunda gestação da história: o analista, como uma mãe simbólica, dá ao que houve a chance de ser ouvido pela primeira vez. E talvez seja isso o que chamamos de cura — não a explicação do que aconteceu, mas o nascimento de uma nova forma de ouvir-se, de existir na própria voz.
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