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A sede e o espírito: ecos de Jung na origem dos Doze Passos


Não foi Jung quem escreveu os Doze Passos. Mas, como uma pedra lançada na água, sua influência se espalha em círculos concêntricos até alcançar o coração desse gesto que viria a transformar o modo como compreendemos o vício: não apenas como doença, não apenas como falha moral, mas como uma sede — uma sede de totalidade.

A história começa com um homem chamado Rowland Hazard, um empresário americano atormentado pelo álcool, que buscou Jung na Suíça como quem busca um oráculo. Depois de meses de tratamento, Hazard recai. E Jung, com a honestidade radical dos que se inclinam diante do limite do saber médico, diz a ele o que muitos jamais ousariam: seu caso era, na linguagem da época, sem esperança — a não ser que ocorresse algo de outra ordem, algo que Jung chamaria de transformação espiritual vital.

Esse momento — quase bíblico, quase mítico — ecoa até os alicerces do que viria a ser o Alcoólicos Anônimos. Rowland, tocado pela fala de Jung, se une ao Oxford Group, um movimento cristão que pregava confissão, entrega a Deus, restituição — ecos claros dos passos que seriam formulados por Bill Wilson, cofundador do AA, que também passaria por sua própria experiência-limite, uma noite de desespero seguida de um relâmpago interior que, na linguagem de Jung, talvez fosse o vislumbre do Si-mesmo.

Décadas depois, Wilson escreve a Jung. A carta é uma oferenda. Ele agradece, diz que, mesmo sem saber, Jung fora um dos catalisadores daquilo que havia se tornado uma comunidade viva de cura e esperança. Jung responde. E em sua resposta, revela o que sempre estivera em jogo: que o alcoolismo, no seu sentido mais profundo, não é apenas um vício, mas uma tentativa desesperada de saciar a sede da alma. O espírito da garrafa como substituto do espírito divino. O spiritus do álcool como simulacro do Spiritus Dei.

“Seu desejo por álcool era a expressão distorcida da sede espiritual por plenitude”, escreveu Jung — essa frase, como uma chave, abre um campo onde a clínica toca o sagrado, onde a psicologia se curva diante do enigma da transformação.

Nos Doze Passos, há algo de profundamente jungiano, mesmo que não se diga. A rendição ao que nos excede. O confronto com a sombra. A reparação dos danos causados. O reconhecimento de que sozinhos somos fragmentos, e de que é preciso algo maior — não necessariamente um Deus institucionalizado, mas uma dimensão de alteridade radical — para que o eu possa começar a reunir seus cacos.

É essa travessia que ecoa na jornada do adicto em recuperação: não uma cura, mas um caminho; não uma resposta, mas uma série de passos, cada um deles um convite ao mergulho no inconsciente, ao enfrentamento do vazio, à reconstrução paciente da própria alma.



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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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