O preço do silêncio: notas sobre o valor psíquico do sofrimento
- Mário Bertini
- há 6 dias
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Há pacientes que chegam como quem pede licença. Clara, por exemplo, nunca se sentou — ela se recolheu. Como se sua presença ocupasse demais, como se qualquer gesto seu exigisse desculpas antes mesmo de acontecer. Em cada sessão, ela se oferecia ao outro sem jamais reivindicar a própria fome. E era nisso que seu sofrimento se enraizava: não na dor em si, mas no lugar que ela ocupava em sua economia secreta — como se sofrer fosse a única maneira legítima de existir.
Adrienne Harris nos convida a pensar o sofrimento não como um excesso do qual o sujeito deseja se livrar, mas como uma moeda relacional, um investimento carregado de valor subjetivo. A clínica, então, torna-se um campo de tensões entre economias psíquicas diferentes, onde se joga o risco e a possibilidade de criar outro tipo de vínculo, outro tipo de escuta — um que reconheça o valor da dor, sem, no entanto, perpetuá-la como destino.
Clara sofria, sim, mas havia algo mais pungente: ela investia nesse sofrimento como se ele fosse o último bastião de sentido. Quando chorava, pedia desculpas. Quando era acolhida, retraía-se. Porque aprendera, cedo demais, que o amor vinha sempre com uma fatura. E que o cuidado próprio era um luxo egoísta, uma ameaça ao equilíbrio precário de um mundo em que só há lugar para quem se apaga.
Nesse ponto, a escuta analítica não pode ser neutra. Ela precisa ser comprometida com o que Harris chama de multiplicidade psíquica, ou seja, com a ideia de que o sujeito é feito de zonas que disputam entre si: uma parte de Clara queria ser cuidada; outra, acostumada a doar-se até o esgotamento, temia que esse cuidado lhe custasse o afeto do outro. É essa tensão, essa economia em desequilíbrio, que se torna matéria viva da análise.
No espaço transferencial, Clara começou a repetir um padrão: sentia-se útil quando eu, o analista, me mostrava vulnerável. Bastava uma menção a um contratempo pessoal, e ela florescia. Seu sofrimento, ali, encontrava função: ser necessária para manter o outro em pé. Esse padrão, por mais disfuncional que pareça, carrega uma lógica interna coerente: ela aprendeu a amar sendo imprescindível, a existir enquanto doava — e a temer que qualquer gesto de autonomia a transformasse em alguém desamável.
Ao escutarmos com Harris, compreendemos que a tarefa clínica não é arrancar o sujeito de sua economia, mas oferecer outra, onde o valor do self não dependa do sacrifício. É preciso criar um espaço onde o desejo não seja vergonha, onde o prazer não seja uma traição ao outro, onde o descanso não represente abandono.
Mas isso não se faz com interpretações apressadas. Exige tempo. Um tempo de escuta que não violente, que não apresse o desmonte da estrutura psíquica sem antes garantir um novo alicerce. Porque o sofrimento, para Clara, era alicerce e linguagem, e tirá-lo de forma brusca seria condená-la ao silêncio absoluto.
Aos poucos, surgem gestos mínimos: uma pausa entre uma frase e outra, um olhar que se sustenta sem pedir desculpas, um “não” dito com hesitação, mas sem culpa. Pequenas rachaduras em uma lógica antiga. E é nessas rachaduras que o desejo se infiltra, tímido, como a água sob a terra seca.
Adrienne Harris nos lembra que a análise é, também, um trabalho de escavação. Não apenas do inconsciente individual, mas das condições históricas, culturais e relacionais que moldam o que pode ou não ser desejado. Clara não era masoquista por estrutura; ela era herdeira de uma narrativa onde amar significava desaparecer, onde o sofrimento era o bilhete de entrada no mundo dos outros.
Transformar essa narrativa é tarefa árdua. Mas é isso que a análise oferece: um campo relacional onde novas economias podem nascer, onde o valor do sujeito não precisa mais ser medido pela sua capacidade de suportar dor.
No final, talvez a cura — se é que esse nome ainda serve — não esteja em fazer desaparecer o sofrimento. Mas em permitir que ele perca seu valor de troca, que deixe de ser a única língua possível, para que, enfim, o desejo possa falar por si.
Criado com auxílio de IA
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