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No ventre das imagens: escavações sobre a phantasia inconsciente

Há palavras que não chegam ao mundo como conceitos, mas como véus. Não se colocam diante de nós com a nitidez de uma forma, mas se arrastam pelo corpo como uma sombra que hesita. “Phantasia inconsciente” é uma dessas palavras. Seu som carrega a promessa de um mistério anterior à linguagem, anterior mesmo à possibilidade de dizer "eu". Como se falássemos de uma cena vivida no escuro — uma cena que não foi lembrada, nem esquecida, mas que insiste em se repetir, como um sopro que atravessa o tempo psíquico, sem nome, sem início, sem borda.


O que chamamos de phantasia inconsciente é, talvez, uma forma de corpo encenando o que ainda não pôde ser pensado. Um movimento interior que procura imagens para não se afogar em sensações. Imagens que se colam à carne da experiência como umidade à parede antiga: não se veem de imediato, mas fazem o ar pesar, o ambiente ceder. Há nelas uma dramaturgia que se insinua sem enredo fixo, uma espécie de mito individual que se articula antes da história pessoal — e que, mesmo assim, molda cada palavra, cada gesto, cada encontro.


Roussillon nos ensinou que essa cena não se desenrola apenas no interior do sujeito. A phantasia inconsciente, em sua perspectiva intersubjetiva, é também um movimento entre. Ela nasce no espaço transicional entre o dentro e o fora, entre o sujeito e o outro, entre o gesto e a resposta. O bebê, diante de um ambiente suficientemente presente, não apenas projeta sua angústia no seio, como na tradição kleiniana. Ele testa, na carne do encontro, se sua experiência pode ganhar forma no olhar do outro. A phantasia, então, não é uma criação solitária. É o resultado de uma dança assimétrica entre o vivido e o recebido, entre o trauma e a inscrição, entre a dor muda e a possibilidade de sentido.


Metáforas se impõem. Imagino a phantasia inconsciente como uma pintura rupestre encoberta por sedimentos. Não é um desenho que se possa ver à primeira luz. É necessário cavar, escovar os excessos, esperar o contorno emergir. A escuta clínica se assemelha a esse gesto arqueológico: não se trata de interpretar diretamente, mas de abrir espaço para que algo da imagem interna do paciente possa, enfim, ganhar contorno simbólico. Mas esse contorno não é apenas uma conquista do sujeito. É o produto de uma relação — de um campo compartilhado, no qual o analista também se vê afetado, também sonha, também se enreda na atmosfera da phantasia que se encena.


Quando um paciente se agita diante de um silêncio, e projeta no analista o abandono, a crueldade ou a indiferença, não se trata apenas de revivência de uma cena antiga. Trata-se de uma tentativa desesperada de fazer sentir no outro aquilo que não pôde ser simbolizado. É o que Roussillon chamaria de apelo à alteridade radical — não como uma súplica, mas como um gesto de sobrevivência: que o outro sinta por mim o que ainda não posso nomear. E o analista, se estiver suficientemente implicado, sentirá algo dessa injunção. Talvez desconforto. Talvez irritação. Talvez um tédio denso como lama. A phantasia inconsciente, então, não se revela apenas nas palavras: ela atravessa o corpo da relação, afeta a atmosfera do setting, transforma o espaço em cena.


Ela é, nesse sentido, menos uma imagem interna e mais um clima. Uma corrente invisível que, ao atravessar os corpos, cria uma textura emocional que se vive antes de se pensar. E a clínica, mais do que espaço de decifração, é o lugar onde se pode viver essa textura novamente — mas desta vez, acompanhado. O analista se torna, então, testemunha de uma imagem em formação, e também seu suporte provisório. Como se emprestasse sua pele simbólica para que o paciente, enfim, pudesse pintar com tintas mais próprias as figuras de seu mundo interno.


O gesto clínico que acolhe a phantasia inconsciente é, portanto, um gesto de tradução lenta. Não se trata de uma tradução entre línguas, mas entre registros. Entre o corpo e o símbolo. Entre o afeto e a palavra. Entre a cena vivida e a cena pensada. Roussillon falava do processo de simbolização terciária — aquele em que o sujeito retoma uma experiência que antes fora insuportável, e a reinscreve numa nova moldura, partilhada. Nessa moldura, a phantasia inconsciente pode deixar de ser apenas repetição para tornar-se invenção. Não há cura sem essa transformação da imagem muda em metáfora viva.


Por isso, quando um paciente diz “tenho medo de ser engolido”, talvez não fale de um medo atual, mas de um cenário arcaico que se atualiza no aqui-e-agora da transferência. E o analista, se conseguir sustentar o desconforto de ser vivido como predador, poderá criar espaço para que essa phantasia seja vista como imagem — e não mais como destino. A clínica torna-se, então, uma espécie de ateliê das imagens traumáticas, onde as formas podem ser redesenhadas, os contornos suavizados, as cores repensadas.


E no centro desse ateliê, sempre, a relação. Uma relação que não se limita ao manejo técnico, mas que se enraíza na capacidade de estar com. De habitar com o outro os restos de uma cena que não pôde ser inscrita. De permitir que a imagem se forme entre dois corpos, entre dois inconscientes, entre dois silêncios.


A phantasia inconsciente é, assim, o coração pulsante da clínica. Não como uma verdade escondida a ser revelada, mas como uma paisagem a ser habitada. Uma paisagem densa, nebulosa, por vezes aterradora, mas que carrega, em sua repetição insistente, o desejo de ser vista. Desejo de encontrar no outro o espelho em que, pela primeira vez, uma imagem de si possa ser reconhecida — e, talvez, transformada.




Criado com auxílio de IA





 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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