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Nem Deus, nem Diabo: o sujeito em travessia entre Rosa e Roussillon

Não foi num capítulo qualquer que Riobaldo nomeou o sertão por sua potência de labirinto interno, mas num fio contínuo de voz que atravessou o tabuleiro áspero de suas veredas, trazendo à tona o ínfimo pulsar de cada experiência: o amor, a violência, o arrependimento, a dúvida. O sertão de Guimarães Rosa não é apenas um espaço geográfico, mas um corpo de vivências brutas, cruéis e místicas — um corpo que Riobaldo carrega em si, atravessa e, finalmente, tranforma em narrativa. Essa narrativa, como em René Roussillon, pode ser pensada como uma “travessia da experiência”: aquele caminho pelo qual o que era vivido como puro efeito de excitação, desorganização ou pulsão, se convierte em algo que pode ser nomeado, simbolizado, partilhado, e assim tornar-se sujeito de si mesmo.


A travessia, para Roussillon, não é gesto de evasão nem sonho de redenção imaculada, mas reencontro dolorido e perseverante com aquilo que se resistia à palavra. É atravessar as águas turbulentas do trauma para ver o fundo que parecia inatingível, mas que, ao emergir, ganha contornos simbólicos. Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo repete, atua, erra e ama sob a lógica tribal dos jagunços, onde a morte ronda como espectro cotidiano. Cada bala disparada, cada desvio de conduta, cada promessa feita ao diabo — tudo isso parece pertencer ao reino da experiência não simbolizável: um campo caótico onde o eu se dilui em angústia, culpa e fervor guerrilheiro. É nesse ponto de insuportável intensidade que Roussillon apreende o más allá da psique, o lugar onde a experiência arde sem forma.


Quando Riobaldo começa a contar sua história, dirigindo-se a um interlocutor anônimo — “Tu sabes o tanto que trago de dor e sede” —, ele inicia, sem saber, a travessia de sua experiência. O sertão atravessado pelos seus olhos não é apenas terra seca, mas um corpo pulsante de afetos indizíveis: a sede de vingança, a sede de Deus, a sede de amor. O corpo do sertão, assim como o corpo psíquico do sujeito em sofrimento, está marcado por feridas profundas. Roussillon fala que o sujeito só consegue “apossar-se” da experiência brutal quando encontra um outro disposto a “receber” o sintoma, a escutar a repetição sem julgá-la. Riobaldo, ao voltar o olhar para esse interlocutor imaginário — talvez leitor, talvez confessor —, passa a depositar a violência e o medo em algo que pode sustentá-los, transformando-os em palavra. Esse movimento, tão caro à travessia, é também a tessitura do romance.


No sertão, Riobaldo enfrenta o demônio como se enfrentasse o próprio núcleo traumático. Ele não nomeia o demônio em termos alegóricos: é a própria força destrutiva que o persegue, que se manifesta na traição de Hermógenes, no pacto ambíguo que sente com Zé Bebelo, na angústia de perceber que pode ter matado Joca Ramiro. Esses encontros com a violência absoluta não lhe permitem recuar para a negação. Ao contrário: é por meio da confissão dos feitos — “Eu matei, meu Deus, mas fui forçado” — que ele começa a criar o espaço para que a experiência se torne experiência. Na linguagem de Roussillon, a travessia só emerge quando o sujeito consegue, em campo relacional, colocar o que era cena fulminante do corpo no território da fala. E, em Riobaldo, a fala é uma arma que corta mais fundo que a lâmina de punhal: ela fere o próprio sujeito, o esponja da memória, e, simultaneamente, acalanta o interlocutor.


Se o sertão é uma zona de indizível, o romance funciona como essa “zona de simbolização secundária” de que fala Roussillon. A palavra “amor” em Riobaldo é inscrita com a mesma força com que se pronuncia “mata” ou “diabo”. Antes de ser palavra, o sentimento agressivo ou terno pulsa no corpo do jagunço como uma ferida aberta. É a travessia que permite que esse impulso se torne possível de ser enunciado: “Eu quis bem. Eu quis mal.” Aqui, a antinomia viva de Guimarães Rosa se confunde com o processo psíquico de Roussillon, onde a experiência não se organiza como parágrafo, mas como pulsão, repetição, enigma. E o sujeito só escapa da repetição compulsiva quando, através da fala transferencial — real ou ficcional —, dá forma ao episódio traumático, tornando-o sujeito de si.


Roussillon nos alerta que essa travessia não acontece em linha reta; é um movimento rizomático: volta e retorna, repete e fragmenta, até emergir simbólico. Riobaldo, ao revisitar as veredas da memória, não segue uma cronologia linear, mas mergulha em espirais de lembrança: a morte de Joca, o encontro com Diadorim, o consolo ilusório de d. Isaura. Esse entrelaçar de passado e presente remete à travessia do sintoma no divã: não há salto fácil do não-dito para o dito; há rasgos, esquinas, recolhimentos, como a prosa rousseauniana de Guimarães Rosa, que curva, retorce e, enfim, reflete a complexa tessitura da subjetividade.


Quando a voz de Riobaldo suspira “Diadorim era eu”, experimenta-se o ápice de simbolização última: a união paradoxal do amor e do desespero, a revelação de que a alteridade que se perseguia dentro do conjunto dos jagunços era, afinal, reflexo do próprio sujeito. Roussillon diria que essa é a instância em que a travessia encontra a queda no sim-bólon, o sinal que assume a totalidade da experiência. A revelação de si no outro, o enigma da alteridade dentro do próprio ser — tudo isso aponta para a transformação: o que parecia um evento esmagador, vivido no rompante, agora se sustenta como núcleo de subjetividade. A experiência que era puro tumulto torna-se matéria de sentido.


No sertão, a paisagem agreste é, simultaneamente, psique e metáfora de cada sujeito que passa por ela. Riobaldo empunha o revólver com a mesma mão que escorrega, trêmula, sobre as páginas da própria dor. Roussillon recorda que, no campo analítico, o analista também empunha essa linguagem simbólica com mãos delicadas: se pressiona demais, o sintoma se fecha; se recua, o sujeito se afoga no silêncio invertebrado. O sertão, nesses termos, converge com o divã: ambos são espaços de testemunho e resistência, onde a travessia se dá no espaço entre a “fala escrita” e o “ali dentro”.


O rio do Jaguar — que Riobaldo quase atravessa para fugir de si — é imagem viva de um limiar: água que separa o antes do depois, a vida da morte, o eu do diabo. Para Roussillon, esse rio imaginário tem paralelos com a “linha de sombra” que o sujeito precisa transpor para atravessar o trauma. Antes do rio, o jagunço era apenas ação; depois do rio, ele retoma a escrita, retira a pele bruta que grudava na memória e deixa que a palavra revele sua fenda. A travessia, então, é travessia do sujeito: não se trata de cruzar por cruzar, mas de permitir que algo se quebre e, por isso mesmo, possa renascer na forma.


O sertão não perdoa a fraqueza, e Riobaldo sabe disso nas articulações trêmulas de seus dedos, quando se lembra do gosto da terra ao provocar o cavalo. A experiência está inscrita no corpo: cicatriz de batalhas antigas, suor ácido, sede que jamais é saciada. Roussillon diria que essa inscrição corporal só se torna passível de simbolização quando o sujeito encontra o “olhar que acolhe” — aquele olhar que, na fala, não faz discurso moral, mas se aproxima daquilo que é cru. Da mesma forma, Riobaldo, ao confessar-se à página em brasa, encontra o outro na ausência: o leitor que ouve, mesmo sem responder, a palavra que rasga o vento. Essa relação sem rosto, mas cheia de pulsão mútua, é o território da travessia, onde a experiência encontra solo para germinar.


Se o sertão é espaço imenso de contradições — beleza que fere, morte que acaricia, amor que mata —, a psicanálise de Roussillon é terreno de contradições semelhantes: o sintoma que doa mas que pode salvar, a palavra que fere mas que pode acolher. Riobaldo aprende, em cada curva do caminho, que “o homem só é grande quando se faz um, sozinho.” E, simultaneamente, que é o outro — o jagunço, o amigo, o traidor, o amante — que sustenta essa grandeza. A travessia, portanto, é ato solitário e, ao mesmo tempo, inserido num campo de escuta que vai além do silêncio: é escuta encarnada, que acolhe o grito e a ternura, o punhal e o beijo.


Ao finalizar o romance, quando Riobaldo declara que “o diabo é um lugar, sim, dentro de cada um” — está revelando que atravessou, ao menos em parte, o lugar primitivo do não-sujeito. Em Roussillon, atravessar a experiência é tornar-se sujeito daquele espaço obscuro, reconhecer o diabo-funesto como parte de si, e assim permitir que o símbolo, a palavra, a narrativa, estabeleçam a ponte entre o que era corpo bruto e o que, enfim, pode ser pensado. O sertão e o sintoma se encontram nesse ponto: ambos se oferecem como campo onde se travessa a experiência para ser experiência.


Talvez, à maneira de Guimarães Rosa, possamos concluir que atravessar não é chegar a lugar algum, mas reinventar-se a cada passo do caminho: “Coragem, porque o certo é brasa amarela, e quem se demora se deita na noite.” Roussillon ensinaria que essa “coragem” psíquica se constrói no choque entre a falta de palavras e a necessidade de nomear. E, no sertão, Riobaldo percebe que, no instante exato em que a palavra me gruda à garganta, nasce o sujeito que atravessa. É essa travessia que nos convida a redescobrir: o encontro heroico e humilde com a própria dor, o rio que, uma vez cru­zado, revela não a planície, mas a profundeza do próprio coração humano.





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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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