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A travessia do fantasma e o objeto transformacional

Foto do escritor: Mário BertiniMário Bertini

Há uma cena repetida no espaço do inconsciente, uma espécie de teatro onde o sujeito se encontra com aquilo que funda e organiza seu desejo. É ali que o fantasma ganha corpo, movendo-se entre o imaginário e o simbólico, preenchendo a falta com uma narrativa. O sujeito habita essa cena, prisioneiro de sua lógica, mas também sustentado por ela. E, no entanto, há algo que escapa, algo que exige transformação. Aqui, o conceito de objeto transformacional, elaborado por Christopher Bollas, ilumina uma nova possibilidade para a travessia do fantasma: não como uma ruptura abrupta, mas como um movimento criativo que redefine a relação do sujeito com seu desejo.


Bollas descreve o objeto transformacional como aquilo que possibilita ao sujeito uma experiência de transformação profunda, uma reorganização da própria subjetividade. Não é um objeto estático, mas um processo: um espaço de potencialidade onde o sujeito pode ressignificar o mundo e a si mesmo. É curioso como essa noção ressoa com a ideia de travessia do fantasma em Lacan. Se o fantasma estrutura o desejo em torno de uma cena fixa, atravessá-lo seria, em última análise, deslocar-se para além dessa fixação, aceitando a falta não como uma ausência trágica, mas como um convite ao novo.


No entanto, não se trata de abandonar o fantasma como se fosse um obstáculo que deva ser superado. O fantasma é a ponte entre o sujeito e o desejo, mas é também uma armadilha, na medida em que cristaliza as formas de relação com o Outro. É ele que garante uma certa estabilidade, que protege o sujeito da angústia diante do Real, mas essa estabilidade tem um preço: a repetição. O fantasma é repetição. Travessá-lo, nesse sentido, exige um gesto paradoxal: reconhecer sua função enquanto se desidentifica dele.


E é aqui que o objeto transformacional ganha uma relevância inesperada. Atravessar o fantasma não é apenas desvelar o roteiro inconsciente que organiza o desejo; é também criar espaço para a relação com algo novo, algo que transforma. Bollas sugere que o objeto transformacional pode ser encontrado em experiências cotidianas: uma música que nos toma, um texto que nos reorganiza por dentro, um vínculo que nos expõe ao desconhecido de forma segura. Esses objetos não oferecem respostas, mas abrem perguntas, criando possibilidades de simbolização onde antes havia apenas fixação.


Imagino, então, um sujeito cuja fantasia central é a de controle. Sua cena fantasmática o posiciona como alguém que deve dominar todas as variáveis para não ser invadido pelo caos. O controle é sua proteção, mas também sua prisão. Ele procura o Outro apenas para reafirmar sua crença de que precisa estar no comando, e qualquer abertura ao inesperado é vivida como uma ameaça. Nesse caso, a travessia do fantasma não seria um simples abandono dessa posição; seria a descoberta de que o controle não é o único modo de se relacionar com o desejo. Talvez, ao ouvir uma peça musical ou ao entrar em contato com um vínculo terapêutico que lhe permita experimentar o imprevisto sem ser aniquilado, ele comece a se deslocar. Não para eliminar o controle, mas para transformá-lo em algo mais fluido, mais vivo.


Essa transformação não ocorre de forma linear. Há resistência, retorno ao fantasma, lapsos onde o sujeito se apega novamente à lógica da repetição. Mas cada experiência com o objeto transformacional o convida a habitar o espaço do desejo de maneira menos rígida, menos alienada. E, nesse processo, o fantasma perde sua força determinante. Ele não desaparece, mas é reposicionado: de um roteiro inconsciente que organiza o desejo a um ponto de partida para novas criações subjetivas.


Pensar a travessia do fantasma a partir do objeto transformacional exige, portanto, uma perspectiva ampliada. Não é apenas a desconstrução da fantasia, mas a abertura para uma relação criativa com o desejo, onde o sujeito não se fixa em um sentido único, mas habita a falta como um espaço de invenção. A falta, nesse contexto, deixa de ser o trauma da ausência e torna-se o motor da criação.


E, talvez, seja essa a verdadeira ética da travessia: não superar o fantasma, mas transformá-lo em uma possibilidade de vida. O sujeito não abandona a cena, mas aprende a reinventá-la, permitindo que o desejo se mova, se transforme, encontre novos objetos e, com eles, novas formas de existência. No fim das contas, atravessar o fantasma é aceitar que a falta não precisa ser preenchida — ela pode ser vivida como espaço de liberdade.



Criado com auxílio de IA



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