top of page

Em Defesa de uma Certa Anormalidade: a Abordagem de Joyce McDougall

Foto do escritor: Mário BertiniMário Bertini

A anormalidade sempre nos confronta com o limite. Não o limite do outro, mas o nosso próprio, aquele lugar onde a normatividade esbarra em sua incapacidade de abarcar a riqueza de uma vida singular. Em Em Defesa de uma Certa Anormalidade, Joyce McDougall faz dessa colisão seu campo de investigação, sua poesia psicanalítica. Não é um tratado sobre o desviante, mas uma meditação sobre o que nos torna humanos, frágeis e, por isso mesmo, infinitamente criativos.


Ao nos debruçarmos sobre sua obra, somos desafiados a pensar o que significa viver em um mundo que insiste em classificar, rotular, organizar. A norma, silenciosa e onipresente, não é apenas uma medida, mas uma força, um gesto de violência que transforma em doença aquilo que escapa à sua gramática. McDougall nos convida a virar o olhar, a perceber que, naquilo que é chamado de anormal, reside não apenas o sofrimento, mas também a invenção – a potência de uma vida que cria para si mesma as condições de sobrevivência.


O que McDougall chama de anormalidade não é um desvio no sentido médico ou social. É uma resposta, uma criação, um esforço para dar forma ao informe, para simbolizar o que talvez seja, por natureza, irredutível ao símbolo. São corpos que falam quando as palavras falham, sintomas que gritam onde o silêncio seria insuportável. Mais do que patologias, são linguagens. Ao despatologizar o sofrimento, McDougall não o minimiza; ela o reconhece em sua complexidade, em sua necessidade de ser escutado como uma narrativa única, irrepetível.


Há uma ternura no olhar de McDougall que é rara na literatura psicanalítica. Ela não escreve com a autoridade de quem sabe, mas com a humildade de quem escuta. Suas histórias clínicas – fragmentos de vidas que se entrelaçam com a sua própria – revelam um cuidado quase artesanal. Cada caso, uma obra. Cada sintoma, uma tentativa de poesia. É como se a autora nos dissesse: "Escute mais fundo, olhe para além do diagnóstico." E, ao fazer isso, percebemos que aquilo que parece disfuncional é, muitas vezes, um grito de resistência, uma busca por continuidade onde a vida parecia impossibilitada.


Penso, enquanto leio McDougall, que a normalidade é um refúgio confortável. Há nela uma promessa de pertencimento, de estabilidade. Mas, ao mesmo tempo, há uma renúncia – àquilo que é incômodo, estranho, selvagem. A anormalidade, nesse sentido, exige coragem. É um ato de exposição, de vulnerabilidade. E não seria também um ato de liberdade? Ao defender a anormalidade, McDougall não apenas desafia as fronteiras da psicanálise; ela questiona o que entendemos por saúde, por felicidade, por realização.


A relação entre a anormalidade e o corpo, em McDougall, se revela de maneira contundente quando ela descreve pacientes cujos corpos se tornam o palco de conflitos emocionais que não encontraram espaço na linguagem. Por exemplo, ela narra o caso de uma mulher que, diante de traumas inomináveis na infância, desenvolveu crises de paralisia nas mãos – um sintoma que parecia transformar sua dor psíquica em uma manifestação física, tangível. Para McDougall, esse sintoma não era apenas uma "falha", mas uma tentativa criativa de dar forma a algo que permanecia insuportavelmente sem nome. O corpo, assim, emerge como um interlocutor silencioso, capaz de expressar o que a psique não consegue simbolizar, tornando a anormalidade uma espécie de linguagem alternativa, ainda que dolorosa.


Ler Em Defesa de uma Certa Anormalidade é um convite a abandonar certezas. Não há, nas páginas de McDougall, soluções fáceis ou respostas definitivas. Há, antes, um compromisso ético com a singularidade, com a delicadeza de cada vida. E é esse compromisso que ressoa tão profundamente. Pois, ao final, o que ela nos oferece não é apenas uma teoria, mas uma postura: a de escutar o outro – e a nós mesmos – com uma atenção que acolhe o que é estranho, difícil, "anormal". Uma atenção que transforma o desvio em possibilidade, o sintoma em expressão, a dor em criação.



Criado com auxílio de IA


2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

O Novo Ano e a Ilusão das Metas

O ano novo chega como uma brisa que desperta e inquieta, um sopro que parece trazer consigo a promessa de recomeço. Nas ruas, as pessoas...

Comentarios


bottom of page