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Entre o Nada e o Sonho: A Loucura Privada em Tabacaria de Fernando Pessoa

Foto do escritor: Mário BertiniMário Bertini

O dia se derrama na janela, e com ele, o peso de uma vida que se desdobra entre a poeira dos cigarros e a luz oblíqua que atravessa os vidros. Há algo naquilo que Fernando Pessoa escreve em Tabacaria que ressoa como um fio de lâmina na pele: um corte fino, quase indolor, mas que, ao menor movimento, se abre em sangue. Esse poema não é apenas sobre a melancolia de existir, mas sobre uma certa loucura silenciosa, uma loucura privada, como diria André Green, que se arrasta entre os limites da realidade e do delírio sem jamais transbordar inteiramente para um lado ou outro. O eu poético que se confessa nas linhas do poema não é um louco no sentido clássico, nem um sujeito que se perde nos excessos do delírio. Ele habita uma zona onde o pensamento se fecha sobre si mesmo, onde a pulsão se inverte e não se inscreve no desejo, mas se anula na esterilidade de um eu que já não se reconhece.


Há, no sujeito que fala em Tabacaria, uma cisão insuportável entre o desejo de ser e a consciência de que ser é sempre um fracasso. Ele se olha no espelho e não se vê, ou melhor, vê-se apenas como uma ausência refletida, um fantasma de si mesmo pairando entre as cadeiras e os ruídos da cidade. Esse esfacelamento subjetivo é o que Green identificaria como um estado-limite, uma zona onde a simbolização falha, onde a falta não se inscreve plenamente no campo do desejo, mas tampouco se resolve na psicose. É o espaço do vazio, da esterilidade psíquica, onde a pulsão se debate sem encontrar uma forma de realização. Entre a neurose e a psicose, existe essa região pantanosa onde o eu se debate sem nunca se afirmar, onde o pensamento se enreda em repetições que não conduzem a lugar algum.


“Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu”, escreve Pessoa, e esse movimento—pensar, achar, esquecer—é o próprio mecanismo do colapso psíquico nos estados-limite. Não há uma narrativa coerente, apenas fragmentos de um pensamento que se dissolve antes de se fixar. A perplexidade não é apenas um efeito estético; ela é um sintoma. O sujeito não sabe mais se deseja ou se já desistiu de desejar. A tabacaria, com seu dono gordo que sorri, é o mundo que existe para os outros, para aqueles que vivem sem precisar confrontar o buraco negro da própria consciência. Mas para aquele que observa, que se vê do lado de fora da própria existência, a tabacaria não é apenas um comércio banal, é um símbolo do real inalcançável, do cotidiano que continua indiferente à ruína interna.


Green falaria aqui da morte psíquica, não no sentido do apagamento da consciência, mas de um desligamento pulsional, um colapso da libido que faz com que a vida se torne um teatro mecânico, onde tudo acontece sem que o sujeito de fato se implique. O eu que fala no poema oscila entre estar vivo e estar morto, mas essa morte não é literal—é a morte daquele que assiste à própria vida sem conseguir se investir nela. “Falhei em tudo”, ele diz, e nesse fracasso se revela a angústia de quem não pode nem mesmo desejar o sucesso, pois já não crê que o desejo possa produzir algo que não seja mais um escombro. Há um cansaço profundo naquilo que ele diz, um cansaço que não se resolve no sono, porque não é apenas físico, mas ontológico. Ele já não pode acreditar na própria existência como algo que se sustenta.


Essa ideia de um esvaziamento interno, de uma vida que se arrasta sem pulsão, se alinha àquilo que Green descreve como uma loucura privada: não é uma psicose estrondosa, visível, que se inscreve no olhar do outro, mas uma falência íntima do aparelho psíquico, que se dá sem alarde. Diferente da loucura que se impõe no delírio, essa loucura não grita—ela silencia. Não há um outro que a testemunhe, porque ela se dá na mais absoluta solidão interna. Ela não irrompe na realidade, como na psicose, mas a corrói desde dentro, tornando a experiência do mundo um campo desolado onde nada se move de verdade. A loucura privada é, paradoxalmente, discreta. Ela se dá na esquina de um pensamento, na repetição das mesmas palavras, na sensação de que tudo o que poderia acontecer já aconteceu e que nada mais se move.


O poeta se dilui na paisagem, sua existência reduzida a um pensamento fugaz: “Fiz de mim o que não soube”. Mas como saber-se? Como construir-se quando o próprio espaço interno se esfarela entre o nada e o quase? Pessoa capta essa condição com uma precisão brutal: não se trata apenas da tristeza, mas de um tipo de loucura fria, uma loucura que não explode, que não se manifesta em gestos dramáticos, mas que corrói silenciosamente desde dentro, como uma ferrugem na alma. O eu poético não se debate com a angústia de um Hamlet, que hesita, que questiona, que se atormenta entre a ação e a inação. O que se vê aqui é algo mais árido: um sujeito que não pode nem mesmo perguntar-se “ser ou não ser”, porque a própria questão já perdeu o sentido.


Há, em Tabacaria, uma melancolia que se aproxima do que Green descreve como uma experiência de vida onde a morte já se infiltrou. A tabacaria continua existindo, imóvel, o dono gordo continua sorrindo, mas para o poeta, nada disso importa. O real continua lá, mas já não se inscreve no desejo, apenas se impõe como um peso inerte. Esse é o traço central do estado-limite: um sujeito que não chega à psicose, mas que tampouco pode elaborar simbolicamente sua dor. Ele se encontra paralisado num entrelugar onde o pensamento se torna um eco, onde a identidade se dissolve num reflexo opaco. O mundo se esvazia, e com ele, esvazia-se também o eu que deveria habitá-lo.


A cidade continua. Os automóveis passam. As mulheres saem para a rua. O tempo segue seu curso, impiedoso, alheio. O poeta, no entanto, já não está ali. Ele se encontra num outro tempo, um tempo que não flui, mas que se repete como um círculo vicioso, onde cada pensamento leva ao mesmo ponto de partida. Não há futuro, não há passado, apenas um presente que não se move. “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.” A negação tripla assinala esse lugar de esvaziamento, essa impossibilidade de projeção, essa existência que já não tem força sequer para sustentar uma promessa. E ainda assim, há um desejo estranho de se agarrar ao mundo: “Mas tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Esse contraste entre o nada e o excesso, entre a negação de si e o acúmulo de sonhos, revela a tragédia última do estado-limite: querer desejar, mas não poder sustentar o desejo.


E então, a tabacaria segue. O dono continua vendendo cigarros. O poeta continua ali, parado, existindo sem existir, oscilando entre o dentro e o fora, entre a presença e a ausência. O poema não nos dá um desfecho, porque não há desfecho possível para esse tipo de experiência. A loucura privada não se resolve, ela apenas se arrasta, silenciosa, consumindo o sujeito aos poucos. Green nos ensina que os estados-limite são espaços de um sofrimento sem nome, de um vazio que não encontra inscrição. Pessoa nos mostra esse vazio na forma de um poema, um poema onde tudo acontece e, ao mesmo tempo, nada acontece. Um poema que é, ele mesmo, o espelho opaco de uma existência suspensa.


No fim, a tabacaria continua lá, imóvel, indiferente. O dono continua sorrindo, os cigarros ainda estão à venda. A realidade segue intacta, mas aquele que a observa já se perdeu em um outro lugar, um lugar onde a dor é muda, onde a loucura é um exílio privado, um estado-limite onde a vida já não pulsa, mas também não se extingue completamente. Apenas permanece, suspensa, como um fumo que se dissipa no ar.


Criado com auxílio de IA



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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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