Nenhuma criança é tábula rasa
- Mário Bertini
- 23 de abr.
- 3 min de leitura
Há um tipo de silêncio que antecede a palavra, mas não por ausência — e sim por excesso. Um ruído ancestral, molecular, que vibra antes da linguagem. É nesse plano, anterior à narrativa, que se inscrevem os primeiros traços de um sujeito. Não há ali uma folha em branco, lisa, pronta para ser escrita. Há já uma escrita — pulsátil, embrionária, mas decisiva.
A imagem da criança como tábula rasa — cara a Locke e à ilusão iluminista de transparência — ainda seduz muitos discursos contemporâneos. A pedagogia normativa, as abordagens comportamentais simplificadas, até mesmo alguns discursos parentais bem-intencionados: todos flertam com a ideia de que se pode moldar o sujeito desde o zero, como se fosse possível resetar a carne e reescrever o psiquismo a partir da vontade. Mas isso é esquecer que o corpo sente antes de falar, que o olhar toca antes de compreender, que a pele registra antes que o eu se organize.
Desde as primeiras horas, o bebê já traz marcas. Não só genéticas — mas marcas de um outro, de uma história que o precede. André Green dizia que o inconsciente do sujeito nasce do inconsciente dos pais — e poderíamos estender: nasce também das expectativas, das ausências, dos ritmos afetivos que cercam o recém-nascido. Não há neutralidade nesse campo. O bebê, com seu choro inaugural, já convoca uma cadeia de sentidos. Ele não nasce só como corpo, mas como enigma.
A neurociência do desenvolvimento vem confirmar o que a clínica já suspeitava: o infante é sensível a padrões, a ritmos, a rostos, a melodias emocionais. A arquitetura do cérebro é plástica, sim, mas nunca indiferente. Ela se molda em resposta ao mundo, mas com base em predisposições estruturais — circuitos já ativos que se afinarão com a experiência. Há uma coreografia implícita entre biologia e ambiente, uma dança entre aquilo que pulsa por dentro e aquilo que ressoa por fora.
As pesquisas de Spelke, Kagan, Werker e tantos outros desmontam meticulosamente a ilusão da folha em branco. Os bebês discriminam sons, antecipam ações, reagem a rostos com padrões emocionais específicos. O sujeito não nasce pronto, mas também não nasce neutro. Ele emerge no entrelaçamento tenso entre o que já é e o que ainda será.
A psicanálise, com sua escuta radical, nos obriga a reconhecer que há um sujeito antes do eu. Um sujeito do desejo, da repetição, da ausência — e esse sujeito não espera a linguagem para existir. Ele aparece nos atos falhos do corpo, nos silêncios do sono, nos movimentos involuntários. Como diria Roussillon, é pela via da sensorialidade que o psíquico se esboça. Antes de qualquer representação, há afecção. E é isso que desmente a tábula rasa: o sujeito já sente antes de se saber.
Talvez devêssemos trocar a imagem da tábula por outra: a de uma palimpsesto vivo. Um corpo onde inscrições antigas coexistem com novas camadas, onde o passado não se apaga, mas reverbera. Um corpo onde cada gesto carrega ecos — biológicos, psíquicos, relacionais. Um corpo onde educar não é escrever do zero, mas decifrar, escutar, traduzir aquilo que já vibra.
Porque nenhuma criança é tábula rasa. Cada uma nasce com uma história por dentro — silenciosa, sim, mas não muda. Uma história que pulsa no olhar, na pele, no ritmo do sono. E é nesse tecido denso entre o dado e o vivido que se tece a singularidade.
Criado com auxílio de IA
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