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No meio da Travessia

Começo por onde dói: quando a passagem que deveria nos conduzir do abraço sem bordas ao encontro que suporta a diferença é atravessada pela metade, o sujeito aprende a viver sem chão. Não há triunfo heróico em Édipo; há uma operação silenciosa que inscreve um terceiro entre eu e o outro, e quando isso falha, a vida segue como quem caminha sobre uma ponte que só foi construída até o meio do rio. O corpo avança, mas a narrativa não acompanha; a identidade, sem costura, escapa pelas frestas. Chamamos de difusão de identidade essa experiência de si em pedaços, onde as imagens do self e dos objetos não se reconhecem como partes de um mesmo rosto. Ali onde deveria haver lei viva, aparece o eco de um interdito vazio; onde a triangulação ofertaria respiro, instala-se uma díade saturada, ora devoradora, ora desértica. No consultório, isso não chega com nomes, chega como atraso, silêncio, voracidade, fuga. E a técnica, se rígida, repete o trauma: o enquadre torna-se mais uma borda cortante, a neutralidade, mais um abandono requintado. Ferenczi nos ensinou que elasticidade não é concessão, é clínica: curvar o método para que o sujeito não precise quebrar para caber no método. Num começo de tarde, Ana — trinta e poucos — entra ofegante, cinco minutos depois da hora, e diz sem olhar: “Eu me perco no caminho, mesmo vindo há meses pelo mesmo percurso”. Em outro tempo eu teria interpretado a resistência ou contado o tempo como quem mede justiça; hoje, escuto a frase como quem tateia uma cicatriz. Digo apenas: “Chegar aqui mexe com um mapa antigo”. Ela suspira, o corpo se organiza na cadeira, e eu percebo que ofereci não uma desculpa, mas uma borda onde ela pudesse pousar sem cair. A elasticidade, ali, foi um gesto mínimo: reconhecer que o limite, para ela, é um lugar de exclusão antes de ser um acordo simbólico. Em outra sessão, o silêncio ocupa a sala com a densidade do não-dito herdado. Fico junto, ao alcance do olhar, e quando noto que a respiração dela encurta como quem se agarra por dentro, arrisco: “Talvez ficar calada seja a maneira mais segura que você encontrou para não me perder”. A frase não pretende decifrar: oferece companhia. Ela chora, conta da infância em que o barulho atraía a fúria e a quietude parecia um pacto de sobrevivência. O silêncio deixa de ser resistência para se tornar história; o ato vira signo; um terceiro se inaugura entre nós. Penso então como a travessia edípica bem feita não é a moralização de desejos, mas a capacidade de suportar ambivalências: amar e odiar a mesma pessoa sem se estilhaçar, desejar e renunciar sem transformar o outro em inimigo íntimo. Quando essa operação fracassa, o mundo fica maniqueísta por necessidade, e a identidade se difunde entre idealizações súbitas e desvalorizações abruptas. A clínica da personalidade borderline já nos habituou a esse léxico, mas é sempre um acontecimento singular quando, na transferência, a ferida pede outro manejo. A técnica elástica, aqui, opera como borda transicional: nem cede à fusão, nem reforça a distância que congela. Às vezes ela se materializa em explicitar o contrato com mais calor do que costumeiramente faríamos — “posso te avisar dois minutos antes do final para não parecer um corte?” —, às vezes em traduzir a interpretação para a língua afetiva do paciente — “ouvi você dizendo que ficar perto é perigoso e ficar longe é insuportável; posso te ajudar a construir um entre?”. Não se trata de psicopedagogia emocional, mas de devolver à regra sua dignidade de lei viva: algo que protege sem punir, que limita sem humilhar. Em uma manhã chuvosa, Ana envia uma mensagem fora do combinado pedindo um horário extra “urgente”. O impulso clínico tradicional me lembraria da abstinência; a memória contratransferencial me conta outra coisa: com Ana, a urgência costuma esconder um pedido de prova — “você existe quando não estou aí?”. Respondo que não posso naquele dia, mas abro a possibilidade de um encontro breve no início da semana seguinte e ofereço, ali mesmo, duas linhas de ancoragem: “percebo que ficou difícil tolerar a espera; podemos começar guardando essa parte de você aqui comigo”. A negativa preserva a assimetria e o enquadre, a resposta responsiva impede que a lei se confunda com desamparo. No encontro seguinte, ela chega sem urgência e, com pudor, pergunta se é “ridículo” precisar dessas confirmações. Digo que não; digo que, quando a travessia falha, a lei é vivida primeiro como abandono, e que reaprender a confiar exige evidências repetidas, e que podemos construí-las. Sinto, ao falar, que a função paterna — entendida como mediação — se escreve agora no corpo de uma relação que a suporta, e não na citação de um princípio. É nesse lugar que a elasticidade cura: ela não substitui o Édipo por um colo infinito, tampouco idealiza um protocolo; ela fabrica, com o paciente, o terceiro que faltou. A cada intervenção que reconhece o gesto antes do juízo, a cada manejo que transforma um limite em palavra compartilhada, o campo intersubjetivo passa a oferecer o que Roussillon chamaria de uma experiência de continuidade “suficientemente viva”, onde o sujeito pode começar a se ver inteiro no olhar do outro sem precisar se dissolver nele. A difusão de identidade perde terreno quando representações de self e de objeto que antes só se conheciam por choque começam a se reconhecer por tradução. Não é rápido, não é linear, e não raro retrocede. Num fim de sessão, quando aviso que faltam três minutos, Ana se irrita: “Sempre você decide o fim!”. Respondo que sim, que decido pelo enquadre que nos protege, e que posso ajudá-la a encontrar uma forma de dizer “ainda não posso ir” sem transformar isso numa guerra. Há um silêncio breve. Ela pergunta se, na próxima, podemos reservar os últimos cinco minutos para preparar a saída. Digo que sim. A regra não foi rasgada; ganhou elasticidade para suportar o peso da história. Penso, então, nas capacidades que o PDM-2 descreve — diferenciação e integração, relações e intimidade, regulação de impulsos, mentalização — como frutos maduros de árvores que, para crescer, precisam de clima e estação. A elasticidade da técnica é esse microclima que repara intempéries antigas: ela modula a intensidade, oferece sombra quando o sol queima, abre clarabóias quando a noite ameaça ser sem fim. Ao final de alguns meses, não há epifania cinematográfica, há mudanças discretas: Ana passa a chegar no horário com naturalidade; quando atrasa, avisa sem vergonha; o silêncio, agora, aparece como pausa e não como bunker; nas semanas de vazios, ela pede “uma explicação mais concreta” e aceita quando proponho “guardar a pergunta” em vez de estourar a sessão em acting. Pela primeira vez, fala do pai sem caricatura, da mãe sem sacerdócio, de si sem rótulos. O que era ou/ou começa a tolerar o e/e. Não dizemos que o Édipo foi “corrigido”; seria pouco e seria falso. Dizemos que uma travessia possível foi inventada: com tábuas provisórias, sinais combinados e um terceiro que aprendeu a nascer entre nós quando o rio engrossa. A cura, nesse horizonte, não é a vitória de uma teoria, mas a conquista de um ritmo: um compasso onde a lei respira, o desejo encontra passagem e a identidade, antes difusa, se deixa narrar. E quando, numa terça qualquer, ela se levanta e diz “até semana que vem” como quem sabe que há semana que vem, reconheço que algo da ponte já alcança a outra margem.




Paciente autorizou o uso de sua história para escrita do texto. Dados biográficos foram alterados para preservar sua identidade.


Criado com auxílio de IA.


 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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