O corpo que escreve o que não pode dizer
- Mário Bertini
- 14 de out.
- 3 min de leitura
“Pois o belo nada mais é do que o começo do terrível, que ainda podemos suportar.”
— Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno
Há algo de profundamente humano no gesto de adoecer. Não no sentido médico, mas no gesto simbólico que o sintoma encena: o corpo escreve o que a palavra não pôde dizer. É uma forma de linguagem primitiva, uma escrita na carne, feita à revelia da consciência, mas ainda assim um modo de continuar existindo.
Freud via nisso um compromisso. O sintoma seria o ponto de encontro entre o desejo e a defesa, o acordo precário que permite ao sujeito suportar a tensão entre o que quer e o que teme. Há, nesse equilíbrio, um ganho primário: o alívio da angústia, a substituição do impossível pela metáfora. Um modo de dizer “ainda sou” quando tudo o que se sente é a ameaça de dissolver-se.
Mas André Green, ao olhar para esse mesmo gesto, viu algo mais grave — e mais terno. Para ele, o sintoma não é apenas um compromisso, mas um ato de resistência à morte psíquica. Quando a vida mental se aproxima do ponto em que a representação falha, o sintoma se torna o último lugar habitável. É uma cabana precária erguida às margens do deserto do não-representado. O que Freud chamou de ganho, Green vê como sobrevivência.
René Roussillon, por sua vez, estende essa leitura até o limite da relação. O sintoma é o que resta do vínculo quando o vínculo falha; é a tentativa de preservar a continuidade de um si-mesmo que não encontrou espelho no outro. Quando o trauma corta a possibilidade de simbolizar, o sujeito se refugia em formas de expressão que são, ao mesmo tempo, autodestrutivas e criadoras — gestos, atos, sintomas. Eles não comunicam: atestam. São monumentos erguidos ao fracasso da linguagem.
O ganho primário torna-se então a possibilidade de permanecer em cena, mesmo quando a peça desmorona. O sintoma mantém viva a função de ligação — entre o corpo e o sentido, entre o eu e o objeto, entre o passado e o agora. É uma pequena centelha de continuidade, o resíduo de uma conversa interrompida.
Freud via nisso uma economia; Green, uma pulsação trágica; Roussillon, uma tentativa de reconhecimento. Mas talvez o sintoma seja tudo isso e mais — um ato poético involuntário, uma forma de arte que o sujeito não escolhe produzir, mas da qual depende para não desaparecer.
Há beleza e dor nesse paradoxo. O sintoma é a cicatriz que fala, o resto que insiste, o eco de um chamado não respondido. Quando a palavra não alcança o outro, o corpo fala por ela — e fala como pode: com dores, repetições, excessos. Não é apenas doença; é o idioma do que sobreviveu sem tradução.
E talvez esse seja o verdadeiro ganho primário: não o alívio da angústia, mas a insistência da vida psíquica. O desejo, mesmo ferido, continua a produzir formas; o eu, mesmo clivado, insiste em se reconhecer. É como se o sintoma dissesse: não pude simbolizar, mas ainda posso existir.
Nessa luz, o analista não cura o sintoma: ele o escuta até que volte a ser palavra. A escuta restitui ao sujeito o poder de nomear o que antes apenas doía. Quando isso acontece, o sintoma deixa de ser a escrita muda da sobrevivência e se transforma em narrativa — em gesto que encontra testemunha.
A cura, então, não é o desaparecimento do sintoma, mas sua metamorfose. Ele se dissolve não porque é suprimido, mas porque enfim é traduzido — porque o corpo pode descansar e deixar que a palavra continue o trabalho da vida.
Nota clínica
Pensar o ganho primário como forma poética da sobrevivência transforma o lugar do analista: ele deixa de ser o técnico da decifração e torna-se o testemunho vivo daquilo que insiste. O sintoma não é mais um erro a corrigir, mas um resto a ser acolhido — o traço de uma história que ainda não encontrou forma.
Escutar o sintoma nesse registro é aproximar-se do que Rilke chamava de “o começo do terrível”: o ponto em que o sujeito só pode continuar vivo à custa de uma dor que fala por ele. E é ali, nesse limiar entre o belo e o insuportável, que o trabalho analítico se torna uma arte de rolar o indizível — até que, de tanto rolar, volte a ser linguagem.
“Transforma o sofrimento em gesto, pois o gesto é já uma libertação.”
— Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta
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